Thinking Football Summit
O propósito deste evento era oferecer insights e promover a reflexão sobre o futebol enquanto fenómenos não só desportivo, mas também social e tudo o que ele implica em seu redor.
Decidi estar presente por vários motivos (por ordem de importância):
- Enquanto fisioterapeuta, para perceber as dinâmicas multidisciplinares e dos diversos departamentos, e como a sua interação pode influenciar o nosso trabalho (e nós o seu);
- Enquanto profissional de saúde, para ter uma perspetiva mais macro do futebol e compreender a complexidade dos fenómenos de tomada de decisão e das várias agendas de cada departamento/entidade reguladora, muitas delas envolvendo implicações diretas em fatores de risco ou protetivos do aparecimento de lesão;
- Enquanto interveniente desportivo, para estar a par dos assuntos relevantes nas diversas dimensões do contexto do futebol;
- Enquanto cidadão, entendendo que há muita coisa de errada no futebol, com impacto social negativo;
- Enquanto adepto da modalidade e antigo praticante, por diversão.
Agora, terminado o evento, está na altura de fazer a devida reflexão.
O evento social
A entidade responsável por organizar este evento foi a Liga Portugal. Não é segredo que a Liga é forçosamente um excelente organizador de eventos sociais - no mundo do futebol, principalmente nos escalões de elite, a dimensão social do espetáculo é um fator muito relevante, envolvendo normalmente a presença de figuras importantes da sociedade. Assim, este evento refletiu isto, com dinâmicas interessantes principalmente nas possibilidades para estabelecimento de networking - desde a necessidade de inscrição e download de uma aplicação onde estavam todos os participantes e as respetivas áreas de interesse, atuação e colaboração, até aos espaços e agenda destinados especificamente a networking (com comida e bebida disponível). Para além disso, foi um evento que capitalizou muito bem diversas áreas para rentabilização e marketing: viu-se a preocupação em criar buzz à volta do evento nas populações mais jovens, com a criação de pequenos campeonatos de futebol, o envolvimento recorrente de youtubers e influencers (e que levou a que um dos dias fosse claramente um dia destinado à presença de escolas, por exemplo), ou os momentos de meet-and-greet com diversas personalidades do mundo de futebol, em particular de jogadores de equipas da Primeira Liga.
As dinâmicas e a organização
O maior espaço do evento, localizado centralmente, era a Arena - nesta decorria a componente "lúdica", com expositores de diversas marcas, atividades diversificadas e um palco central onde havia entrevistas a elementos desportivos com peso nas populações mais jovens e que normalmente acumulavam uma personalidade desportiva a uma personalidade "online".
No exterior do pavilhão, localizava-se o campo destinado aos campeonatos promovidos pelo evento e aos jogos de estrelas.
Depois, havia diversos espaços destinados à partilha de conteúdos ou aos painéis que iriam fazer as suas comunicações: os maiores eram o Arena Stage e o TFS Stage, sendo que no primeiro decorriam normalmente painéis para conversa mais informal ou apresentações mais gerais, e no segundo havia espaço a debates sobre temas específicos da modalidade. Depois, havia dois espaços mas pequenos, o Talent Room no qual decorriam momentos mais específicos semelhantes a "workshops" e o The Academy, no qual o teor das apresentações tinha uma componente mais académica e de reflexão, ocasionalmente suportada com apresentações realizadas pelos profissionais.
No que diz respeito às comunicações, um ponto importante - que não sei se propositado ou não - foi o facto de as apresentações não estarem divididas por clusters de interesse, ou seja, poderia haver, no mesmo espaço, às 12h uma apresentação sobre reabilitação de lesões, às 12h30 uma conversas sobre logística de eventos, e às 13h um painel sobre a componente técnico-tática do futebol. Isto apresenta vantagens e desvantagens; se é verdade que isto cria nas pessoas um eventual interesse e a "necessidade" de estar em contacto com áreas que não aquelas em que se sentem confortáveis ou que já dominam (o que contribui para uma compreensão mais alargada do fenómeno "futebol"), também implica que se possa perder a oportunidade de ver comunicações que se ache interessantes e que estejam a decorrer concomitantemente noutros espaços. A organização também criou a possibilidade de assistir remotamente, via streaming, às apresentações, através da app.
Do ponto de vista prático, os pontos negativos foram essencialmente os atrasos (que, sendo expectáveis num evento deste género, não foram minimamente acautelados em termos de gestão horária), tornando por exemplo impossível a realização de questões por parte do público; para além disso, aconteceu nalguns casos a promoção (praticamente ainda na véspera) de oradores que eventualmente acabariam por não se confirmar, criando expectativas desajustadas em quem comprou o ingresso.
Algo que não sei muito bem o que pensar, é se o evento deveria ser exclusivamente em português, ou se dado o caráter internacional e a presença de oradores e convidados de outras nacionalidades, deveria ter sido totalmente em inglês. Apesar disso, a organização salvaguardou muito bem esta questão através da tradução simultânea.
Os temas abordados
Assim, tinha todo o interesse e tive a possibilidade estar presente em momentos que não estavam (pelo menos diretamente) relacionados com a Medicina Desportiva ou a Fisioterapia.
De todos estes, o único no qual a Medicina Desportiva não tinha um papel a desempenhar nalguma parte do espectro de ação, mas no qual está invariavelmente envolvida a partir do momento em que há profissionais desta área a trabalhar no futebol, era a parte financeira. Ainda assim, o meu grande interesse em estar presente neste painel tinha a ver com o meu interesse enquanto cidadão de compreender que tipo de passos vêm sendo tomados no sentido de tornar o futebol um espaço mais transparente, principalmente dada a magnitude das verbas envolvidas e do consequente interesse que ele gera, tornando-o muito propenso a atividades como tráfico de influências ou corrupção. Mais uma vez, e como te costume quando não se percebe nada do assunto, foi bom compreender que as atitudes regulativas a tomar não são tão fáceis como parecem, e que há diversos elementos a considerar quando falamos de tornar o futebol um produto mais justo e democrático, mas ao mesmo tempo mantendo-o apelativo (que foi reforçado no painel sobre a governance no futebol através de questões como a Superliga Europeia ou a alocação e distribuição de verbas dos patrocínios, contratos televisivos, gestão de interesse nos clubes, federsações e demais agentes, entre outras nuances).
Bastante positivo neste sentido foi ver elementos de equipas adversárias (como por exemplo, em diversos paineis estavam, simultaneamente, elementos de Sporting, Benfica e Sporting, entre outros), denotando claramente uma atitude coletiva forte e unida em prol da identificação e resolução dos problemas.
Uma nota rápida para uma pergunta acerca de qual o espaço na indústria da comunicação para os "meios de comunicação convencionais" e do "jornalista" enquanto veículo de informação, uma vez que hoje em dia qualquer pessoa é um produtor de conteúdo. A resposta do painel foi exatamente aquilo que penso: o problema da perceção do trabalho dos jornalistas, e a noção de que eles podem ser substituídos por outros elementos que não têm a sua capacidade de ação, prende-se com a incompetência que estes tiveram em adaptar o seu trabalho ao consumo do público, principalmente mantendo a deontologia e efetividade do seu trabalho - o trabalho do jornalista deve passar por criar conteúdo apelativo, mas não necessariamente de consumo fácil e rápido; pelo contrário, o storytelling dos jornalistas deve manter-se fiel aos factos, mas cobrindo histórias relevantes mas de forma mais profunda e melhor analisadas, eventualmente permitindo retirar elações de uma ou várias áreas de impacto social de e no futebol (veja-se por exemplo o exemplo recente da equipa do Cândido Costa no Cândido on Tour).
Naquilo que diz respeito a áreas que poderiam envolver indiretamente a Medicina Desportiva, destacaria 3:
- A relação entre o processo de treino (ou prática desportiva) e as infraestruturas: uma discussão interessante sobre qual o impacto que a tomada de medidas macro e a alocação de recursos e responsabilidades aos municípios, e como isso permite promover o desenvolvimento do desporto na sociedade civil. Para além disso, abordaram-se quais os desafios associados às questões globais atuais (como o pós-covid e a guerra e as respetivas consequências), assim como potenciais soluções, principalmente no que diz respeito à construção e manutenção de infraestruturas.
- O pós-carreira do jogador de futebol: num painel com 3 ex-jogadores (Tarantini, Oceano, e Artur Moraes) conversou-se acerca da vida após aposentadoria dos jogadores de futebol. É importante relembrar que Tarantini tem muito trabalho desenvolvido neste sentido (podem vê-lo aqui https://www.facebook.com/tarantini.pt/photos/a.410160512720410/977105182692604/). Uma das áreas que normalmente é esquecida na vida dos atletas depois de se retirarem é a sua saúde - se nos jogadores de futebol há dimensões que não aparentam ser um problema (pelo contrário, como a saúde cardiovascular), outras como a saúde músculo-esquelética são motivos de preocupação, com o desenvolvimento precoce e sintomático de osteoatrose, assim como outras queixas que retiram qualidade de vida aos ex-jogadores. Tentei perceber juntos dos participantes as suas considerações sobre o assunto, e qual o papel que viam dos clubes e profissionais de saúde neste âmbito de intervenção. A sua resposta não foi conclusiva.
Tentarei, a seu tempo, desenvolver um documento em formato de call-to-action no sentido de abordar este assunto. - O futebol feminino: o futebol feminino é um produto cada vez mais apelativo, e felizmente cada vez mais discutido. No âmbito da Medicina Desportiva, contudo, este ainda é vulgarmente negligenciado (isto pode ser consequência de alguns tabus e dificuldade em se abordar de forma concreta as suas especificidades - ilustrados na perfeição pela dificuldade de se dizer que a mulher tem um corpo diferente do homem). Gostava de ter podido discutir algumas questões como a abordagem necessária e pouco comum a questões específicas da mulher como o ciclo menstrual, a incontinência ou a gravidez em atletas, assim como a diferente epidemiologia que lhe está associada - tudo implicando uma capacitação e treino diferenciado para profissionais de saúde que queiram atuar neste contexto, justificando que se aloquem recursos, financeiros ou outros, a este processo de recrutamento e educação. Nada disto foi possível porque 1) o assunto não surgiu de forma orgânica na discussão e 2) não houve tempo e espaço para perguntas.
Também houve um fórum para a discussão de calendários competitivos, com tópicos como a sua sobrelotação e a relação económica/desportiva - também aqui ficou evidente que medidas como a redução da liga não ajudam realmente aqueles que precisam (que são os jogadores de equipas maiores e que forçosamente disputam competições internacionais). Surgiu por diversas vezes a questão da prevenção de lesões e o putativo impacto que a organização do calendário poderá ter ao nível da performance e/ou risco de lesão.
Áreas da Medicina Desportiva no futebol
A indicação dos profissionais relacionados com a Performance Atlética ou a Medicina Desportiva ficou à responsabilidade da Football Medicine, que "patrocinou" a presença de diversos profissionais de áreas desde o treino, à nutrição ou reabilitação.
Como de costume, fez maioritariamente um excelente trabalho. Mas é de realçar a necessidade da Liga de ter de recorrer a uma entidade externa (e, por princípio - ainda que não seja o caso - com possíveis conflitos de interesse) para providenciar a informação nesta área. Falarei mais sobre isto mais à frente.
Ainda assim, havendo a necessidade de o fazer, fê-lo (na minha opinião enviesada) bem.
Das diversas partilhas, destacaria a qualidade evidenciada pelo Luís Mesquita, com uma exposição muito clara e limpa, mas ao mesmo tempo altamente esclarecedora e que tornou fácil um assunto denso e complexo, algo que também os nutricionistas António Pedro Mendes e Vitor Hugo Teixeira fizeram, abordando as várias dimensões de atuação do nutricionista. Ambos tornaram aparentemente muito simples assuntos que são profundamente complicados e com muitas nuances.
O fisioterapeuta Ricardo Vidal transmitiu a sua experiência pessoal na gestão de um atleta com joelho responsivo a cargas de treino e propôs algumas estratégias de intervenção, focando muito e bem na comunicação e sensibilização da equipa técnica.
Os profissionais da ciência do desporto Francisco Tavares e Mário Simões, profissionais de renome na área, discutiram com o prof. Pedro Mil-Homens formas de otimizar a exposição dos jovens jogadores a treino desde idades precoces, e todos os benefícios que daí poderão advir.
Para além destes tópicos, foram abordados outros temas dentro da área da reabilitação pelos fisioterapeutas Telmo Firmino e Luis Pinho, assim como um momento de partilha sobre podologia e outro de "prevenção de lesões". Infelizmente não consegui estar presente nestas.
Reflexão geral
No geral, diria que aquilo a que o evento se propôs, conseguiu. Para 1ª edição, foi bem-sucedido, teve níveis de adesão bastante altos na generalidade e em certos espaços e conseguiu reunir profissionais de várias e diferentes áreas. Não sei, contudo, se conseguiu fazer alguma diferença mais do que no sentido de reunir as pessoas e colocá-las, pontualmente, a conversar.
Algo importante em eventos como este, em que estão representados vários níveis hieráquicos executivos da área e no qual se discute o estado do futebol e as respetivas problemáticas e barreiras à adoção de melhores práticas nos vários setores de atividade, é importante que no final saiam recomendações de implementação, ou pelo menos de exploração ou investigação. Não me parece que o evento, como foi desenhado no papel ou operacionalizado na prática, possa cumprir com esse pressuposto (mas espero também estar errado).
Em relação à Medicina Desportiva, houve algumas conclusões que me parecem ter ficado mais ou menos claras:
Relação Dept. Clínico - Dept. Comunicação
Atitude cooperativa entre as instituições
Doping
Até assumindo que isto é mais foco da área médica que da fisioterapia, é incompreensível esta ausência.
Pouca representatividade por parte de profissionais de saúde na audiência
No fundo, isto vem fortalecer a ideia de que não houve a presença de muitos profissionais de saúde neste evento. Sendo verdade que não tenho dados concretos, não me parece, pelo que pude ver, que tenha havido uma afluência muito grande de profissionais de saúde quando comparado com outras áreas (comunicação, área técnica e/ou executiva).
Há várias justificações para esta ausência, desde a perceção de inadequação por parte dos profissionais, até à incapacidade das estratégias de marketing fazerem o evento chegar ao nosso radar de conhecimento, mas a verdade é que me pareceu que houve um desconhecimento/desinteresse geral por parte dos profissionais da área da Medicina Desportiva.
Esta ausência em si não tem mal, uma vez que não era um evento específico da área, mas esta ausência de meios onde se pode discutir medidas pode ter um preço.
Reduzida influência nos restantes (e mais importantes) stakeholders
Se de facto a saúde dos atletas é importante (e é-o, reconhecidamente, por todos), temos de estar presentes na tomada de decisão. Mais de uma vez vi serem mencionadas questões como a incidência ou a severidade de lesões, sem um profissional de saude no painel que pudesse atestar à veracidade ou fiabilidade da informação a ser veiculada.
Mesmo questões que aparentemente podem não necessitar do nosso parecer, devemos alertar para que isto não é verdade - questões como o congestionamento dos calendários ou medidas regulamentares dentro do campo são questões que devem ser abordadas não só pelo prisma desportivo, garantindo que se mantém a cultura e filosofia do jogo, a sua atratividade, e que não de deturpa a verdade desportiva. mas também que tudo isto é feito preservando a segurança para a saúde dos atletas.
Talvez consequência desta ausência de representatividade dos lugares de decisão, a verdade é que tanto quanto pude apurar, a Liga tem uma espécie de comité consultivo para áreas da saúde, mas este é relativamente recente. Desconheço a sua constituição, mas é algo que tentarei averiguar.
Um dos momentos de partilha mais aguardados era a apresentação do treinador do Palmeiras Abel Ferreira. Eu não tive a oportunidade de ver, mas não deixa de ser curioso que já depois desta ter lugar, fizeram-me chegar uma imagem de um dos slides da sua apresentação que releva claramente a importância (pelo menos em quantidade) do Dept. Clínico.
Sobre este assunto partilho abaixo alguma leitura recomendada.
Considerações finais
Sou um apaixonado pelo futebol, e pela Fisioterapia. Por este motivo, nunca foi segredo que o meu local de trabalho de eleição era o Futebol, onde já estive a felicidade de estar, e onde receio eventualmente não conseguir regressar dada a forma como se trabalha de forma transversal neste meio.
Este evento serviu para realizar algum networking e partilhar perceções sobre o futebol e a Medicina Desportiva ao seu serviço (e receber feedback pessoais de lacunas que esta tenha e que necessitem de ser supridas).
Não preciso de esconder que alimento, sem esperança, a possibilidade de regressar ao futebol, e que foi sem dúvida óptimo (mas nesse sentido, inútil) estar presente neste evento, onde tenho agora o objetivo de eventualmente no futuro participar de uma outra forma. Só o futuro dirá.