"Se contribuir 1% para tornar os atletas melhores, então porque não? Fazemos!"
Trabalhar diariamente com atletas de elite tem tanto de motivador como de desafiante. Sabemos que grande parte da literatura disponível nas áreas das Ciências de Treino e Reabilitação aborda atletas cuja capacidades não são as de atletas de elite, facto que advém de complicações logísticas, económicas e contextuais que impedem que haja um volume de investigação naqueles que constituem, apesar de tudo, os outliers do Desporto.
Sob este chapéu de trabalho de excelência, e falando da área da reabilitação ou gestão quotidiana dos atletas - que são da direta responsabilidade do Fisioterapeuta - fica tácito um princípio que à partida pode soar intuitivo, mas que é falacioso e que na realidade pode mesmo ser perigoso para a seriedade com que cumprimos o nosso trabalho.
É comum vermos, por parte das entidades empregadoras, treinadores e atletas, a demanda por cuidados de excelência: exigem-nos respostas assertivas e conclusivas, requisitam a nossa disponibilidade total, dizem-nos que o mais recente material que tiver de ser comprado, por muito que custe, tem de ser comprado, todos estes argumentos sob a premissa de que "se for isto que vai oferecer aquele 1% de hipóteses de ajudar/melhorar/recuperar, temos de o fazer". Todos estes princípios partilham a ideia de que "saltar mais 1 centímetro ou correr 1 milissegundo mais rápido" advêm de estratégias extraordinárias e que, assim, deverão passar a fazer parte do cuidado que prestamos aos atletas.
Contudo, isto não funciona bem assim. Abaixo, partilho um artigo do blog Pain Science, de Paul Ingraham, que explora algumas das considerações estatísticas associadas a esta "melhoria residual, mas decisiva".
De forma mais genérica, e até sem ser necessário entrar nesta análise mais detalhada das considerações relativas à investigação nas intervenções visadas (até porque, muitas vezes, esta não existe) esta linha argumentativa tem diversas falhas e parte de diversos erros conceptuais e falácias argumentativas, que deverão ser explorados e discutidos, sob riscos, que discutirei à frente, de estarmos a fazer mais mal do que bem.
A Fisiologia dos Atletas e a Plausibilidade Biológica
Tudo parte do facto de os atletas serem indivíduos com diversas particularidades e que (nomeadamente os de elite) são indivíduos com nuances comportamentais e fisiológicas que os diferenciam da pessoa comum. Dentro destas estão um enorme índice competitivo, uma motivação acima da média e uma resposta muito peculiar às intervenções, tópicos que têm pontos de análise pertinentes, mas outros que são mitos. Convém esclarecer alguns pontos antes de prosseguirmos.
- Definição de atleta: as definições que utilizamos não são só semântica. Muitas das vezes falamos de atletas (e nomeadamente de atletas de elite) quando nos referimos a praticantes de excelência no respetivo desporto. Isto é uma má concepção. Se quisermos discutir se os atletas têm ou não a fisiologia diferente de um não-atleta, não podemos com isto considerar todos os indivíduos cuja capacidade técnico-tática é acima da média. Por exemplo, nos desportos coletivos, onde questões mais cognitivas e técnicas têm particular impacto no resultado final (principalmente se considerarmos a ausência de associação deste com as competências físicas), é manifestamente errado dizer que os indivíduos de elite têm fisiologias muito particulares, algo que poderia eventualmente ser considerado correto (ou plausível) se falarmos de atletas de desportos ou disciplinas em que a competência física se reflete com maior rigor no resultado desportivo.
- Fisiologia diferenciada: assim, depois de definirmos quem são os atletas que queremos colocar no grupo que sugerimos terem uma fisiologia muito peculiar, diferente dos restantes não-atletas, temos de tentar perceber o que quer dizer "ter uma fisiologia diferente", e se de facto isso é verdade ou não.
Os atletas são indivíduos cujo treino, neste caso em concreto nas suas dimensões físicas, proporcionou neles, nos seus corpos, e portanto na sua morfologia e fisiologia alterações significativas (que, em última instância e de forma simplista (e, para o caso em discussão, de forma não-patológica), os colocam mais perto de estarem capazes de serem bem-sucedidos no seu desporto). O que é diferente entre atletas e não-atletas não é a sua fisiologia - esta, enquanto ciência fundamental, segue rigorosamente os mesmo princípios em ambos. Não é então verdade que a fisiologia seja diferente.
O que pode de facto acontecer é que, devido à magnitude das adaptações a que estes foram expostos ao longo do seu processo de treino, os atletas se encontrem num ponto diferente nas demandas, necessidades e estado fisiológico em relação aos pares não-atletas. Isto pode de facto ter impacto no entendimento que atualmente temos sobre a gama de possibilidades de influência que temos nos atletas através das nossas intervenções porque, factualmente, a investigação em atletas de elite é escassa.
Contudo, uma questão de este argumento ignora (e que é parte constituinte de uma falácia de apelo à ignorância - "como não sabemos, podemos supor que sim") é a de que então, na realidade, o que é diferente entre atletas e não-atletas não é a fisiologia em si - aliás, não é qualquer uma das Ciências Fundamentais, que são aquelas que deverão, na ausência de evidência empírica, informar a nossa tomada de decisão. Em muitos dos casos em que os autores remetem para a ausência de Ciência associada aos seus métodos, existe uma ou várias Ciências Fundamentais que compilam conhecimento que seria o suficiente para compreender a implausibilidade biológica dos métodos propostos; isto pode ir desde a injeção de produtos homeopáticos, a intervenções ao nível da terapia manual ou mesmo mecanismos explicativos para o resultado da intervenção de exercício.
Abaixo partilho um artigo de Franklyn-Miller que explica algumas destas questões.
Assim, podemos agora compreender que quando alguém refere resultados ou mecanismos extraordinários porque a sua terapia se destina a atletas, existe uma forte probabilidade de se tratar de um argumento falacioso. Isto não faz com que elas sejam menos procuradas - pelo contrário. Na realidade, o que acontece é que, na busca da tal "vantagem competitiva residual", a larga maioria dos atletas começa à procura daquilo que torna a elite a elite... E se a elite o faz, é porque isso faz a diferença.
Falácia da Popularidade
Quando chegamos a um determinado patamar competitivo, é muito mais semelhante aquilo que torna os atletas parecidos, do que aquilo que os torna diferentes - na elite, quase todos os atletas partilham traços ou características, comportamentais e/ou fisiológicas, que os distinguem dos restantes e que são acentuadas e exploradas pelo processos de treino. É aqui, no processo de treino, que muita gente acredita estar o 1% que os distingue e os torna melhores que os outros.
Não é então surpresa que os atletas recreacionais, amadores ou semi-profissionais olhem com atenção para aquilo que os atletas profissionais ou de elite fazem, uma vez que lhe atribuem uma validade conferida pela ideia de que são métodos inovadores ou de excelência. E se num meio tão competitivo como o desportivo essas estratégias parecem conferir vantagem competitiva desses enormes atletas em relação aos demais, também eles de excelência, então o investimento parece tornar-se óbvio para mimetizar o sucesso que vemos nos primeiros.
A isto chamamos de Falácia da Popularidade - porque, obviamente, não é porque alguém usa uma estratégia, que ela passa a ser útil ou comprovada.
A verdade é que, tendencialmente, os atletas de elite seriam de elite porque as características que os tornam de excelência são, em grande medida, inatas e correspondem a fatores como a genética.
Na realidade, o 1% faz a diferença. O 1% que faz a diferença corresponde normalmente a fatores comportamentais e contextuais, onde de facto o treino se insere, mas numa dimensão que é vulgarmente negligenciada porque corresponde a estratégias que vão muito mais no sentido de otimizar as coisas simples que estes devem fazer, ao invés de parecerem altamente complexas, nos mecanismos de atuação e na operacionalização, e de conferirem promessas de mais-valia com uma grande magnitude.
Heurística da Disponibilidade
Para além de nos permitirmos, a nós mas principalmente aos treinadores e atletas com quem trabalhamos, de olhar para as grandes vedetas que idolatramos e percebermos o quão competentes são, e que portanto aquilo que fazem está certamente bem feito, temos a tendência humana de nos esquecermos dos casos que nos contradizem - por exemplo, de todos os milhares e milhares de atletas que, tal como aquele grande ídolo que foi eleito melhor do mundo, cumprem estratégias que nós vamos querer copiar.
Portanto, é muito comum lembrarmo-nos, nós e aqueles que nos rodeiam, dos casos de sucesso e esquecermo-nos daqueles que correram menos bem.
Para além do processo de treino em si, também nos processos de reabilitação existem episódios destes. Partilho no link abaixo uma notícia referente a algumas das intervenções mais bizarras a que atletas recorreram.
Assim, muitas vezes argumenta-se o 1% como sendo tudo aquilo que se possa fazer que já demonstrou resultados, porque nos esquecemos de quando também foi feito, e não produziu os resultados que tanto gostaríamos de apregoar. Afinal de contas, será sempre melhor que não fazer nada, certo?
Falácia da Ação
Um dos discursos que melhor ilustra a política do "1% que vai revolucionar os resultados" é uma espécie da Lei de Murphy da reabilitação: a ideia de que caso se possa fazer alguma coisa, então deve ser feito. Isto vai de encontro à ideia de que mais é sempre melhor. É claro que nem sempre é assim, nem na reabilitação, nem em nada: no que diz respeito à nossa operacionalização da reabilitação por exemplo, os mecanismos de mecanostransdução associados à imposição de carga são fulcrais para a cicatrização e desenvolvimento estrutural, mas esses são os mesmo que implicam complicações como a miosite ossificante. A isto chamamos o princípio de hormese (o vulgar "a dose faz o veneno"). Outro exemplo muito comum deste tipo de atitude é a sobremedicalização, muitas vezes na expressão do reencaminhamento excessivo para MCD's, que poucas vezes conferem realmente uma otimização da tomada de decisão, com todos os riscos, de saúde e de potenciação de nocebo, e custos, financeiros, que trazem.
A Falácia da Ação consiste na ideia de que fazer alguma coisa é sempre melhor, ou pelo menos igual, a não fazer nada; logo à cabeça compreende-se porque este argumento é ilógico - a ausência total da dimensão de eficiência é típica de um contexto onde existem (demasiados) recursos disponíveis, onde o desporto se destaca.
Na Fisioterapia, um dos exemplos de Falácia da Ação mais curiosos (e que nós mais vezes utilizamos para sobre-estimar o nosso impacto ou a efetividade das nossas intervenções) é o típico discurso de que "no próprio dia e no dia seguinte mal me mexia, mas dois dias depois estava como novo". Tipicamente, isto acontece depois de momentos de treino particularmente extenuantes ou nos quais o atleta esteve exposto a uma dose de carga que causou muito impacto - na tentativa de alguma modificação sintomática (que nunca lhes vendemos assim...) fazemos alguma coisa que implica muita dor. Durante um ou dois dias os atletas estão muito sintomáticos e portanto 1) não treinam; 2) treinam, mas reduzem a dose de exposição, mas curiosamente ao terceiro dia atribuem a melhoria dos sintomas à nossa intervenção (adivinharam, porque esta é a maneira como nós lho vendemos).
"Vamos fazer aqui uma ______________ (inserir intervenção), que vai doer bastante, mas vais ver que daqui a 3 dias estás melhor"
Sabem o que é que também lhe ia permitir estar bem 3 dias depois de um treino do qual saiu particularmente cansado ou dorido?
Não fazer rigorosamente nada.
As consequências
Não há problema nenhum (pelo contrário, diga-se) em que os agentes desportivos queiram fazer tudo o que esteja ao seu alcance para alcançar o maior sucesso desportivo. O que está mal, e pode ser contraproducente, é a) achar que isso está num 1% de coisas que podem/devem fazer; b) achar que esse 1% está escondido algures no segredo de algum xamã ou no plano de treinos de uma estrela mundial; c) entender que somos nós a proporcionar esse 1% e d) negligenciarem os conceitos de efetividade e eficiência, e ter uma visão completamente deturpada daquilo que realmente constitui uma vantagem competitiva.
Em última instância, o que isto fará é:
- Que as instituições, treinadores e atletas continuem a gastar recursos e a focar o seu trabalho em estratégias que, na tentativa de atingir o 1%, impliquem a ausência de investimento em intervenções mais simples e mais efetivas;
- Continuar a negligenciar a expertise profissional que nos é concedida por sermos profissionais baseados em evidência científica, valorizando a perceção de expertise nos xamãs e gurus que prometem grandes curas; decorrente disto, a ideia de que para sermos valorizados teremos então de modificar a nossa identidade para ir ao encontro deste tipo de perfil de profissional, o que provavelmente nos fará perder a consideração de pares, outros elementos da equipa multidisciplinar, e até mesmo da sociedade (basta ver os exempli elencados do tipo de "tratamentos" mostrados acima).
Seja como for, é da nossa responsabilidade atuarmos enquanto educadores do contexto em que estamos inseridos, valorizando o contexto e, em consequência, a nós próprios.