Querioterapia
Quando aplicamos uma medida para acelerar a recuperação do atleta, aquilo que pretendemos fazer é diminuir a influência que a fadiga tem no estado geral do atleta (ver https://fisioterapia-desportiva-com-evidencia.webnode.pt/l/recuperacao-sem-ciencia-para-que-serve/). Uma das ferramentas universalmente utilizadas hoje em dia em contexto desportivo é a utilização de crioterapia, ou "banhos de gelo", que consistem na imersão dos atletas em recipientes com água gelada.
Contudo, estes banhos de gelo são feitos de forma geralmente anárquica, não sendo os parâmetros controlados nem a resposta dos atletas monitorizada. Será que este procedimento é utilizado em concordância com o que diz a Ciência, ou trata-se apenas de uma crença fortemente enraizada na cultura desportiva na qual queremos acreditar?
O que faz?
O racional por trás dos banhos de gelo é discutido muito poucas vezes. O que o senso comum diz é que este procedimento é feito devido à vasoconstrição, permitindo teoricamente uma menor deposição dos metabolitos do trabalho celular através do favorecimento do retorno venoso, devido à redução de edema e da sensação de fadiga muscular [1]. Mas será que é de facto isto que acontece e que são estes os efeitos fisiológicos que se verificam após a crioterapia?
Em 2016, Ihsan et al. realizaram uma revisão sobre os pressupostos por trás da imersão em banhos de gelo [2].
- Redução da fadiga
do Sistema Nervoso Central
O raciocínio prende-se com o facto de a diminuição da temperatura do core ter 3 efeitos major: a diminuição do rácio alfa/beta - parâmetro intimamente ligado ao estado de excitação e alerta, estando consequentemente intimamente relacionado com a capacidade de manutenção de esforços prolongados em tarefas funcionais -, o aumento da capacidade de armazenamento de calor - uma vez que a dissipação deste se faz de forma mais eficaz em meio aquático do que aéreo (devido à sua maior condutividade), permitindo uma distância maior em relação ao limite fisiológico de funcionamento do SNC (cerca de 40º) -, e a redução do rácio Dopamina/Serotonina, com a influência que este sistema tem ao nível de processos como o sono, a motivação, o estado emocional ou as alterações de humor [2]. Tanto a primeira como a terceira têm influência direta na perceção de esforço do atleta, o que por si só também permite uma atenuação do processo de fadiga central.
[2]
- Relaxamento Cardiovascular
Para além da diminuição da temperatura do core levar a uma demanda térmica menor - em oposição àquela que está associada ao exercício físico e que implica a dissipação de energia sob a forma de calor- e, consequentemente a uma menor necessidade de aporte sanguíneo, a vasoconstrição implica uma redução do fluxo sanguíneo à periferia. Ambos os fatores contribuem para uma redução da pressão sanguínea junto à pele, ficando um maior volume sanguíneo na região central do organismo. Isto implica uma demanda cardíaca menor, implicando um esforço cardíaco diminuído.
[2]
- Remoção Metabolitos Musculares
Devido a um gradiente na pressão hidrostática conferida pela exposição ao meio aquático, o fluido intersticial (intracelular) segue esse gradiente e desloca-se no sentido intravascular (fenómeno denominado hemodiluição). Este gradiente osmótico vai então implicar que o meio extracelular (os vasos sanguíneos) se encontre hipotónico, o que implicará a consequente deslocação dos metabolitos do funcionamento muscular para os vasos sanguíneos.
Para além disto, a vasoconstrição
associada à exposição ao frio implica um aumento
da pressão venosa central, favorecendo
o retorno venoso e consequente o aumento do volume sanguíneo central (isto
tem em termos de metabolismo celular um volte-face: se é certo que em termos
químicos este processo facilita a remoção dos metabolitos, em termos mecânicos
a diminuição do fluxo sanguíneo implica uma menor oxigenação e nutrição celular
- motivo pelo qual é sugerido que a evidência deste pressuposto é pequena).
CVP: Central Venous Pressure
[2]
- Recuperação do Sistema Nervoso Autónomo
Através
dos mesmo pressupostos por trás do aumento do volume de sangue central, o
coração tem um volume maior de ejeção e, consequentemente, um output cardíaco
maior. Isto vai inibir os reflexos por parte dos barorrecetores cardíacos e
pulmonares, diminuindo a atividade do Sistema Nervoso Simpático e permitindo maior
atividade ao Sistema Nervoso Parassimpático, implicando a bradicardia.
[2]
Ihsan et al. propõem então um diagrama que explica os fenómenos que auxiliam a recuperação pós-exercício, concluindo que a imersão em água fria é particularmente útil após a execução de exercício intermitentes de alta intensidade [2].
Mas,
numa revisão sistemática acerca de quais os efeitos fisiológicos verificados nos estudos realizados que determinavam o estado da arte, a verdade é que o procedimento leva realmente um banho de água fria.
Beakley e Davison observaram as alterações decorrentes
e caracterizaram-nas de acordo com a literatura em alterações cardiovasculares
- onde observaram taquicardia e hipertensão -. respiratórias - onde observaram interrupção da inspiração, hipercapnia
e hiperventilação - e bioquímicas. De facto, esta revisão sistemática de 2009
indica que muitos dos efeitos observados nestes sistemas são contraproducentes
no que diz respeito ao processo de recuperação do atleta: uma resposta térmica
de choque, ativação extrema do Sistema Nervoso, stress oxidativo e aumento da
quantidade de radicais livres e de antioxidantes, tudo fenómenos exatamente opostos àqueles que se pretendiam.
Só que...
Esta revisão de 2009 analisou estudos cuja metodologia não era uniforme, com temperaturas a variarem entre água gélida (abaixo dos 0º) e os 13º, sendo que a maioria se encontrava abaixo dos 10º. Será que isto faz diferença?
Como fazer?
Com pressupostos teóricos tão favoráveis, como foi possível que Beakley e Davison tenham encontrado efeitos tão indesejáveis?
"Eles têm de entrar e nem conseguir lá estar!" ou semelhantes são expressões mais comuns do que se gostaria de ouvir em contexto de desporto vindo de treinadores e preparadores físicos aquando da preparação da crioterapia de imersão.
Machado et al. [3] fizeram uma revisão sistemática na qual avaliavam dois parâmetros fundamentais, que não se verifica serem tidos em conta na prática - o tempo e a temperatura de exposição na imersão nos banhos de gelo.
Estes dividiram os estudos em 2 grupos distintos de
temperatura de exposição- severo (<10ºC) e moderado (11-15ºC) - e 3 grupos de tempo de imersão - curto
(<10 minutos), médio (entre 11 e 15 minutos) e prolongado (entre 16 e 20
minutos).
"Vamos fazer gelo, mas tem de estar mesmo mesmo frio para os jogadores recuperarem bem"
Treinadores
É possível observar que no que diz respeito à temperatura de exposição, as temperaturas mais eficazes na diminuição da perceção de fadiga muscular não são as mais frias, mas sim as moderadas. Um caso claro de hormese, um conceito que implica que não é por se exacerbar determinado processo que ele se torna mais eficaz.
Isto poderá explicar algumas das conclusões obtidas por Beakley e Davison [1], que concluiram que o choque térmico a que eram expostos os atletas aquando de temperaturas tão baixas produzia neles mais efeitos istémicos nefastos do que benéficos.
Também no que diz respeito ao tempo se verifica o fenómeno de hormese - não é por estar mais tempo exposto ao procedimento que os resultados são melhores. De facto, Machado et al. concluiram que a duração óptima para a crioterapia por imersão é entre 11 e 15 minutos.
Então,
Por fim, Stephens et al. expõem a forma como, ainda para além do desconhecimento acerca da real necessidade de uma reflexão sobre o procedimento pela anarquia verificada na aplicação da crioterapia, mesmo quando este é aplicado segundo guidelines específicas pode não ser a melhor estratégia. Os objetivos a atingir subjacentes ao procedimento, fatores intrínsecos como a composição corporal do indivíduo, e mesmo a conjugação de diversos parâmetros para atingir o mesmo fim, podem indicar que o protocolo de crioterapia deveria ser individualizado e não uma receita empregue a toda uma equipa [4].
Recuperar, mas a que custo?
É muito comum, especialmente por ocasião da pré-época, os atletas estarem sujeitos a intensas cargas de treino, o que despoleta índices elevados de síndrome doloroso retardado, motivo pelo qual necessitam de ser expostos a estratégias de recuperação que lhes possam aliviar as queixas de fadiga, de forma a que estejam aptos à sessão de treino seguinte.
Num estudo que comparava os efeitos de crioterapia e os efeitos de estratégias de recuperação passivas após um programa de treinos, Tavares et al. [5] concluíram que os ganhos obtidos foram simultâneos em ambos, mas que no grupo experimental se verificou um ligeiro decréscimo na perceção de esforço, ainda que não fosse estatisticamente significativo.
Por outro lado, Roberts et. al [6] aplicou um programa de treino de 12 semanas no qual, após cada um dos treinos semanais, um dos grupos estava sujeito a estratégias de recuperação ativa e o outro a crioterapia. Não só o primeiro apresentou maiores adaptações celulares ao treino, como estas se expressaram em maior produção de força no final do programa.
Roberts et al. encontraram diferenças estatisticamente significativas no que dizia respeito à área de secção transversa das células tipo II e sinais de maior crescimento dos núcleos das células musculares quer tipo II, quer no total, no grupo sujeito a uma recuperação ativa.
Esta expressão fenotípica das células musculares acabou por se verificar na prática, com diferenças estatisticamente significativas no que dizia respeito aos ganhos de força obtidos aquando do final do programa de treino.
Também Tavares et al. [7] referem que a aplicação de estratégias de recuperação com recurso a crioterapia são largamente benéficas, mas que é necessário ter atenção à sua inclusão num plano de treinos, uma vez que esta pode ter efeitos decrementais nas adaptações fisiológicas esperada após o exercício quando não é aplicada de forma regrada.
Para além disto, um estudo de Point et al. [8] refere que imediatamente após a aplicação de crioterapia existe um aumento da stiffness muscular, o que traz implicações para a prática de atividade física imediatamente após o procedimento, efeitos esses que duram num espaço de até 60 minutos. Ainda que esta prática não seja comum, pode indicar a necessidade de se estudar de forma mais aprofundada a aplicação de crioterapia na stiffness muscular num programa de médio/longo-prazo.
Efeitos negativos na resposta aguda foram também encontrados por Garcia et al., que nalgumas tarefas funcionais, nomeadamente no teste de contramovimento de 30 segundos, tarefa que melhorou no grupo experimental sujeito a crioterapia vs o grupo de controlo após 12 horas da estratégia de recuperação [9]. Isto pode dar sinais interessantes do uso de crioterapia em ocasiões de calendário muito congestionado.
Como se compara a Crioterapia a outras estratégias?
Num estudo de 2012 [10] que compara três estratégias de recuperação - passiva, ativa ( três sessões de treino nos três dias subsequentes ao jogo com 30 minutos de corrida a 50% do VO2 máximo) e crioterapia (três sessões nos três dias subsequentes ao jogo com 10 minutos de exposição a água a 10ºC). O que foi medido foram indicadores inflamatórios, neste caso a presença de células mediadoras de inflamação. Apesar de este estudo ter mostrado que qualquer uma das estratégias é efetiva na redução do número destas células, é extrapolável que estes poderão não ser os indicadores fisiológicos mais pertinentes de avaliar.
Numa revisão sistemática de 2018 [11], foram avaliadas estratégias de recuperação e a sua influência no dano muscular, sensação de fadiga e inflamação local.
As estratégias que a literatura referem como tendo mais efeitos benéficos no processo de recuperação são a massagem, a crioterapia através de imersão e a compressão [11].
Conclusão
Assim sendo, existem artigos de opinião de experts [12], estudos [13] e meta-análises [14] que relatam os benefícios deste tipo de estratégia de recuperação, contudo outros estudos [15] refletem a inutilidade de aplicar esta estratégia quando o é feito diariamente uma vez que não demonstra benefícios quando comparando os ganhos em outcomes funcionais com os fatores de preparação e tempo dispendidos.
Desta forma, a posição da Ciência atualmente parece ser de que o ideal é a aplicação de crioterapia de forma ponderada e tendo em conta os objetivos pretendidos, sendo que a sua aplicação com demasiada frequência pode implicar uma relação custo(perda de capacidade funcionais motoras + dispêndio de tempo e recursos)/ benefício (ganhos ao nível do recondicionamento) baixa.
Ainda assim, e tendo em consideração os bons indicadores que esta estratégia parece implicar, esta é recomendada com moderação e quando conjugada com outras modalidades de recuperação.
Anexo
Para uma leitura ainda mais aprofundada, recomenda-se a leitura da Revisão Sistemática de Broach, Petersen e Bishop The Influence of Post-Exercise Cold-Water Immersion on Adaptive Responses to Exercise: A Review of the Literature (2018).
Bibliografia
[1] C. M. Bleakley e G. W. Davison, "What is the biochemical and physiological rationale for using cold-water immersion in sports recovery? A systematic review," British Journal of Sports Medicine, pp. 179-187, 2009.
[2] M. Ihsan, G. Watson e C. R. Abbiss, "What are the Physiological Mechanisms for Post-Exercise Cold Water Immersion in the Recovery from Prolonged Endurance and Intermittent Exercise?," Sports Med, 2016.
[3] A. F. Machado, P. H. Ferreira, J. K. Micheletti, A. C. d. Almeida, Í. R. Lemes, F. M. Vanderlei, J. N. Junior e C. M. Pastre, "Can Water Temperature and Immersion Time Influence the Effect of Cold Water Immersion on Muscle Soreness? A Systematic Review and Meta-Analysis," Sports Medicine, pp. 503-514, 2016.
[4] J. M. Stephens, S. Halson, J. Miller, G. J. Slater e C. D. Askew, "Cold Water Immersion for Athletic Recovery: One Size Does Not Fit All," nternational Journal of Sports Physiology and Performance, 2016.
[5] F. Tavares, M. Beaven, J. Teles, D. Baker, P. Healey, T. B. Smith e M. Driller, "The Effects of Chronic Cold Water Immersion in Elite Rugby Players," International Journal of Sports Physiology and Performance, 2018.
[6] L. A. Roberts, T. Raastad, J. F. Markworth, V. C. Figueiredo, I. Egner, A. Shield, D. Cameron-Smith, J. S. Coombes e J. M. Peake, "Post-exercise cold water immersion attenuates acute anabolic signalling and long-term adaptations in muscle to strength training," J Physiol, p. 4285-4301, 2015.
[7] F. Tavares, O. Walker, P. Healey, T. B. Smith e M. Driller, "Practical applications of water immersion recovery modalities for team sports," STRENGTH AND CONDITIONING JOURNAL, 2018.
[8] M. Point, G. Guilhem, F. Hug, A. Nordez, A. Frey e L. Lacourpaille, "Cryotherapy induces an increase in muscle stiffness," Scand J Med Sci Sports, pp. 260-266, 2018.
[9] C. A. Garcia, G. R. d. Mota e M. Marocolo, "Cold Water Immersion is Acutely Detrimental but Increases Performance Post-12 h in Rugby Players," Int J Sports Med, 2016.
[10] J. d. A. Bezerra, A. C. M. d. Castro, S. V. A. Melo, F. S. B. Martins, R. P. M. Silva e J. A. R. d. Santos, "Passive, Active, and Cryotherapy Post-Match Recovery Strategies Induce Similar Immunological Response in Soccer Players," International Journal of Sports Science, pp. 12-18, 2014.
[11] O. Dupuy, W. Douzi, D. Theurot, L. Bosquet e B. Dugué, "An Evidence-Based Approach for Choosing Post-exercise Recovery Techniques to Reduce Markers of Muscle Damage, Soreness, Fatigue, and Inflammation: A Systematic Review With Meta-Analysis," Frontiers in Physiology, pp. 1-15, 2018.
[12] H. McGorm, L. A. Roberts, J. S. Coombes e J. M. Peake, "Cold Water Immersion - Practices, Trends and Avenues of Effects," Aspetar Journal of Medicine, pp. 106-111, 2014.
[13] A. Ascensão, M. Leite, A. N. Rebelo, S. Magalhäes e J. Magalhäes, "Effects of cold water immersion on the recovery of physical performance and muscle damage following a one-off soccer match," Journal of Sports Sciences, pp. 217-225, 2011.
[14] J. Leeder, C. Gissane, K. v. Someren, W. Gregson e G. Howatson, "Cold water immersion and recovery from strenuous exercise: a meta-analysis," Br J Sports Med, pp. 233-240, 2012.
[15] V. H. d. Freitas, S. P. Ramos, M. G. Bara-Filho, D. G. Freitas, D. R. Coimbra, R. Cecchini, F. A. Guarnier e F. Nakamura, "Effect of cold water immersion performed on successive days on physical performance, muscle damage, and inflammatory, hormonal, and oxidative stress markers in volleyball players.," Journal of Strength and Conditioning Research, 2017.