O Fisioterapeuta e a Liderança

17-01-2021

Na 1ª Edição da Newsletter, enviada no passado mês de outubro, refleti no Editorial sobre a liderança por parte do Fisioterapeuta. 

Algo que é importante mencionar antes de começar a reflexão é que ser líder não é ser chefe - nem literalmente, nem em qualquer aceção da palavra. Ser líder pressupõe, em primeira instância, uma atitude, e não um cargo. Contudo, se as circunstâncias o proporcionarem, poderá acontecer que, enquanto Fisioterapeutas e profissionais de saúde, tenhamos de assumir o papel de diretores clínicos - algo que será estranho, e talvez até mesmo desafiante, propôr.

A seguir, tentarei explorar estas duas situações, ilustrando com exemplo. 

1️⃣ O Fisioterapeuta como membro da equipa multidisciplinar

Fazer parte de uma equipa é mais do que simplesmente ter um lugar para ocupar. Deve ser encarado como mais que um direito, sob o risco de, a médio-prazo, ser um direito que não justificamos ter. Antes, deve ser uma responsabilidade - a responsabilidade de assumir o que sabemos e não sabemos, o que não sabemos para requerer opinião sobre o assunto, e o que sabemos para informar os restantes membros da equipa. Isto irá implicar que sejamos valorizados pelo aporte de conhecimento que trazemos à tomada de decisão e à sua operacionalização e, de forma tácita, também exigir que os restantes membros da equipa. 

Por exemplo, quando um atleta se encontra num processo de reabilitação, deveremos ser capazes de realizar e aplicar na íntegra um programa de reabilitação de forma a retornar o atleta à sua prática desportiva de forma segura, expondo-nos ao escrutínio dos restantes profissionais, justificando a escolha e desenho das várias estratégias a utilizar ao longo de todas as etapas e fazendo-o sempre de acordo com o nosso espectro de intervenção; ao mesmo tempo, deveremos sondar o médico sobre estratégias farmacológicas que poderão ajudar, escrutinando ao abrigo do melhor estado-da-arte as suas propostas; deveremos recomendar ao nutricionista que ele avalie o atleta de forma a poder adequar estratégias nutricionais para otimizar o processo. 

Teremos de conhecer o campo de atuação dos diversos profissionais, de forma a saber qual o melhor cuidado que podemos proporcionar ao atleta, e que indicadores teremos de identificar para o devido reencaminhamento ou, em contexto desportivo, para a recomendação de avaliação e intervenção de outro profissional.

Aqui, não seremos necessariamente líderes da equipa. Aliás, um dos pontos importantes a mencionar é que é amplamente aceite e recomendado que o médico é o chefe do departamento clínico, situação que compreendo: é um profissional especializado que, ainda assim, reúne informação e conhecimento de um espectro muito alargado de dinâmicas que dizem respeito à saúde do atleta - é natural, e muitas vezes recomendável, que assim seja. Abordaremos esse ponto de seguida.

Contudo, mesmo nestas circunstâncias e não sendo líderes da equipa, seremos líderes dentro da equipa. Somos insubstituíveis no que ao conhecimento da nossa disciplina diz respeito, uma vez que provamos continuamente que mais nenhum profissional que a constitui pode providenciar a informação com qualidade como nós fazemos. Para além disso, o valor que acrescentamos não se prende apenas com o nosso próprio trabalho, mas também com a excelência que exigimos ao trabalho dos outros. Em última instância, isto irá também ser um estímulo de educação em saúde quer para os nossos atletas, quer para os restantes profissionais da equipa multidisciplinar.

Contudo, a nossa obrigação não se esvazia no cuidado direto com o atleta. Acrescentar valor não é só fazendo-o nos cuidados com o atleta, ou na comunicação com a equipa - mas sim também na relação com a instituição ou entidade que representamos.

Por exemplo, ao determos a melhor informação disponível, sermos elementos de conhecimento reconhecido e portanto decisores importantes, seremos consultados no que diz respeito à aquisição de material - poderemos providenciar informação sobre aos custos-benfícios de determinado equipamento, poupando recursos à entidade que nos emprega, e garantindo que o dinheiro que é gasto é, efetivamente, bem gasto. 

Seremos, assim, peças-chave na mudança cultural e comportamental a nível institucional, profissional, e pessoal, daqueles que trabalham connosco.

2️⃣ O Fisioterapeuta como chefe do Departamento Clínico

Como mencionado anteriormente, o chefe do Departamento Clínico é, por definição, o médico. Também por definição, não há nada objetificavelmente errado com isto - isto seria apenas uma luta de egos que, garantidamente, nada traria de bom a nós, a quem trabalha connosco, e ao trabalho que realizamos.

Contudo, isto não tem de ser assim por nenhum motivo hierárquico concreto. Será assim quando a condição mencionada acima, ou seja, o domínico técnico-científico e as capacidades de comunicação, agregação e liderança do médico assim o justificarem - provavelmente é tendencialmente assim fruto do seu percurso e formação. Apesar disso, se estes domínios estiverem mais presentes noutro profissional, é também perfeitamente aceitável que seja então esse o chefe do Departamento Clínico - tal como acima, disputar isto só por motivos hierárquicos era negligenciar o propósito de fazermos, continuamente, o melhor trabalho possível, e transformar a nossa existência numa luta de egos.

Importa também dizer que isto não esvazia a expertise e necessidade de integração de um médico na equipa multidisciplinar, pelo contrário. Continua a haver uma série de dinâmicas e conhecimentos nas quais o médico continua a ser o profissional de excelência e que portanto deverá ser consultado e intervir sempre que necessário. Isto serve para todos os outros profissionais.

A única diferença entre as situações 1 e 2 é então que o porta-voz e membro agregador e orientador da equipa, passou a ser outro.

Por último, é importante também mencionar que muitas vezes as próprias circunstâncias ditam esta situação - em clubes mais pequenos, por forma a poupar gastos com recursos humanos, o Fisioterapeuta sendo o profissional mais versátil (o que não é necessariamente bom...) é contratado quase como o único elemento do Departamento Clínico.

Por todos estes motivos, é então absolutamente necessário refletir: 

O que implica sermos, enquanto Fisioterapeutas, líderes do Departamento Clínico?

No artigo "A Sport Physiotherapist as Medical Director: Taking a Leadership Role", o Fisioterapeuta Liran Lifshitz descreve como foi convidado e acabou por se tornar diretor clínico da Federação Israelita de Futebol. Recomendo a leitura. 

Ser líder do Departamento Clínico continua a pressupôr todos os pontos enumerados na situação 1. Continuamos a ter expertise na nossa área, e limitações técnicas quando as questões abordadas saem dela. Continuamos a necessitar de justificar a opção pelas nossas estratégias de intervenção, e a ter de escrutinar os restantes membros, conhecendo os seus campos de atuação.

Contudo, aqui adquirimos, juntamente com os privilégios associados (nos domínios financeiros, sociais e de reputação), um aumento significativo no que diz respeito à responsabilidade dentro da própria estrutura. Passam a ser do nosso domínio questões como:

  • Logística: ao termos de operacionalizar ou eventualmente delegar tarefas no que diz respeito à atuação do Departamento Clínico, passamos a ser os responsáveis diretos por fazer as coisas acontecer, o que implica que quando algo falha, seremos nós a dar a cara. (Exemplo: o que deve o Departamento Clínico levar para um jogo fora, ou um estágio?) 
  • Saúde: passamos a ser os principais responsáveis pela saúde dos nossos atletas, de forma ainda mais holística (se é que isso é possível). Isto irá implicar por exemplo compreender todo o espectro de adaptações de problemas de saúde e respetivas complicações, músculo-esqueléticas ou não, sendo os principais responsáveis pela atuação dos diferentes profissionais uma vez que seremos nós a gerir a sua atuação. 
    (Exemplo: compreensão de sintomas associados a estados mentais derivados da prática desportiva)
  • Legal: passamos a ter um papel central na gestão do atleta no que diz respeito aos processos legais e burocráticos da sua atuação desportiva e saúde. Isto vai desde a realização de exames médicos na pré-época, até ao conhecimento, sensibilização e implementação de uma política eficaz de anti-dopagem, passando pela atuação de entidades seguradoras em todos os processos.
    (Exemplo: marcação de exames médicos ou elaboração de consentimentos informados para a obrigatoriedade de comportamentos anti-dopagem)
  • Financeira: não seremos responsáveis apenas por estabelecer recomendações ao nível da gestão de recurso financeiros. Ao invés disso, em vez de um papel consultivo, teremos um papel executivo - seremos os decisores sobre que medidas e investimentos deveremos adotar, tendo um budget definido que temos de racionalizar da forma mais eficiente.
    (Exemplo: desaconselhar a compra de uma máquina que está na moda, sensibilizado com sucesso para a contratação de mais um profissional complementar para a equipa)
  • Inovação e Diretrizes Técnicas: mais do que técnico-científica, que está acautelado em todo o nosso espectro de atuação, passa a ser da nossa responsabilidade a implementação e gestão da operacionalização de estratégias de forma generalizada no que concerne às práticas do Departamento Clínico.
    (Exemplo: aprovação de planos de redução do risco de lesão ou aconselhamento direto à equipa técnica)

Deveremos tentar ser elementos mobilizadores de vontade e inspiração, seja em que posição hierárquica for: isto é ser um líder. 

Interessa refletirmos sobre:

  • se as nossas instituições académicas nos estão a preparar para liderar - seja isto uma equipa ou um processo clínico; 
  • se somos elementos inspiradores dentro da profissão, que procuramos continuamente a melhoria e eficiência das nossas práticas, ou se pelo contrário nos habituamos ao "sempre fizemos assim"; 
  • se estamos capacitados para realizar convenientemente um auto e hetero-escrutínio, contribuindo para a otimização das práticas em equipa; 
  • se temos noção real das implicações de liderança num contexto desportivo, quer no que diz respeito ao desenvolvimento de competências diretamente relacionadas com a liderança dentro das soft-skills e comunicação, quer dentro do nosso domínio de intervenção técnica;

Muitos outros pontos poderiam ser levantados. O principal objetivo desta reflexão é tentar inspirar-nos a todos a sermos um pouco mais reflexivos, um pouco mais exigentes e, no fundo, procurarmos ser um pouco melhores a cada dia, elevando o contexto onde trabalhamos e o trabalho que realizamos, até que um dia finalmente possamos ouvir "tu mudaste [para melhor] a nossa forma de estar e trabalhar, obrigado.", que seria o reconhecimento tácito a uma liderança bem-sucedida.


Outra leitura recomendada:

Crie o seu site grátis! Este site foi criado com a Webnode. Crie o seu gratuitamente agora! Comece agora