Medicina Desportiva: aprender a envergar o hábito de "secundário"

07-08-2018

Todos nós, profissionais de saúde, sabemos as nossas potencialidades. Sabemos o quanto estudamos, sabemos o que sabemos e o que não sabemos tão bem (pelo menos idealmente assim seria), e sabemos que somos agentes importantes no contexto social em que vivemos.

Neste caso em específico, vamos abordar o caso do futebol.

Tudo muda quando um profissional de saúde entra no mundo do futebol. Deixamos de ser os profissionais respeitados, literados e de elite que éramos (ou como nos tratavam antes) e passamos a ser mais uma pessoa que está na estrutura para aprovisionar os atletas e lhes satisfazer os caprichos.

Passam a descredibilizar o curso para o qual estudámos e todas as formações em que investimos depois. Paradoxalmente, acham que devemos saber tudo e, ao mesmo tempo, sabem sempre da nossa área mais que nós porque "já estão no futebol há muito tempo".

Uma grande míriade de fatores contribui para isto. 

  1. Primeiro, estamos inseridos numa estrutura hierárquica onde o Departamento Médico está ao nível dos restantes departamentos considerados secundários. Acima de si estão o staff técnico e os jogadores, que estão abaixo da administração do clube. Em último caso está o consumidor final, o adepto.
  2. Segundo, no futebol não há Ciência, não há formação, não há conhecimento específico. Muito resumidamente, o futebol não é uma meritocracia. Pelo menos na maior parte.
  3. Terceiro, ainda que academicamente sejamos dos profissionais mais certificados, isto não se verifica do ponto de vista remuneratório. Onde está o dinheiro, está o poder. Assim sendo, quando o Dept. Médico está em contradição com uma das outras hierarquias... Dificilmente sairá a ganhar.
  4. Nenhum elemento do Departamento Médico poderá obrigar ou proibir um atleta de jogar. Tudo o que este poderá fazer é ouvir as suas queixas, tentar aconselhá-lo o melhor que souber, seja em termos clínicos ou pessoais, mas será o atleta em consonância com o staff técnico a estar na posse dessa decisão.
  5. O Departamento Médico não tem, e nem deveria ter, qualquer visibilidade. Não havendo responsabilidade, não há culpa... Mas, mais uma vez, também não há mérito., logo, não podemos esperar reconhecimento

Muito bem, para fora, ninguém quer saber de nós. Mas nós sabemos, no nosso âmago, que somos importantes. A relação que estabelecemos com os atletas, o dia-a-dia de competição, a azáfama para que toda a parte clínica seja realizada com competência e prontidão, garantem que somos importantes. A reabilitação atempada de um atleta deixa-nos contentes connosco próprios. 

Mas será que a Medicina Desportiva e a Ciência por detrás dela, que nós procuramos com tanto afinco seguir e aprimorar, tem assim tanto para dar? 

Seremos, afinal de contas, tão incólumes a críticas e tão indispensáveis como poderia parecer à partida?


Uma luta perdida

Em 2015, foi bastante noticiado o arrufo entre Eva Carneiro, médica, e José Mourinho, à altura treinador principal do Chelsea.

Note-se que este arrufo veio pelo simples facto de que, quando o jogo estava empatado 2-2 no prolongamento, um atleta do Chelsea ficou no chão incapacitado de continuar a pedir assistência médica e Eva Carneiro e a sua equipa entraram em campo para assistir o atleta.

José Mourinho não se conteve e, quando esta regressava ao banco de suplentes, não foi meigo nas críticas nem poupou nas atitudes. Tudo isto simplesmente porque, desta forma, o Chelsea ficaria reduzido a 10 unidades porque o atleta assistido teve de sair.

Largamente reconhecido que José Mourinho não tinha razão, a verdade é que Eva Carneiro haveria de sair do clube londrino passado pouco tempo.

Em que outro contexto seria alguém despedido por desagradar a outra pessoa da mesma entidade patronal simplesmente por fazer o seu trabalho?


Vendo à frente dos outros... Mas mal

Em 2018 realizou-se em Barcelona, no Camp Nou, uma conferência com o apropriado nome de "Football Medicine Outcomes - Are we winning?"

Na realidade, esta veio trazer uma alargada e interessante reflexão: com a melhoria dos recursos tecnológicos ao nosso dispôr quer na prevenção (GPS), quer na reabilitação (na eletroterapia), com a crescente formação dos profissionais de saúde ligados ao desporto, e com o aumento da informação bem documentada no desporto... Como podemos estar a observar uma tendência crescente de lesões que nos parecem cada vez mais, à partida, "preveníveis"?

São amplamente reconhecidos como os principais métodos para reduzir o aparecimento de lesão a gestão das cargas e o desenvolvimento atlético.

Sabemos, na teoria, que um atleta melhor preparado fisicamente tem menor risco de contrair lesão... Mesmo que não consigamos de facto estar a conseguir prevenir lesões, pelo menos estamos a deixar atletas melhor preparados fisicamente e, assim, a melhorar o seu rendimento desportivo.


Ganha-se com golos. E só é golo quando... A bola entra.

A prevenção de lesões é responsabilidade do Departamento Médico. Ao fazê-lo, descobrimos então que, ao tentar prevenir lesões, acabamos a melhorar os índices físicos dos nosso atletas. Tornamo-los mais fortes, mais rápidos, e saltam mais. Mesmo que sejam atletas que não costumam ter lesões dizemos (ou pensamos) "mal não te faz, na pior das hipóteses ficas melhor jogador."

Aparentemente... Não ficam.

Num estudo estatístico acerca do Mundial de 2018 do site Soccerment que podem ver aqui ( https://soccerment.com/2018/07/30/correlations-physical-and-technical-performances/ ) estes procuraram correlações entre os indíces físicos dos 350 atletas que jogaram mais de 130 minutos e os seus desempenhos em termos qualitativos (descritos a partir de classificações numéricas) ambos obtidos através de algoritmos desenhados pelo próprio site. Os resultados são assombrosos.

De 0 a 5%, as correlações encontradas para as diversas posições em campo são medíocres.

De facto, a correlação para todos os atletas excepto os guarda-redes é de... 0%.

Podemos então concluir que a nossa influência no direta no campo é literalmente próxima de nula.


Pois bem...

Não temos poder real dentro da estrutura, Não somos mágicos, não fazemos desaparecer lesões da noite para o dia, não prevenimos (apenas, quanto muito reduzimos) lesões e por muito que consigamos que os nossos atletas sejam melhores fisicamente, isso parece não se refletir no seu desempenho.

Podemos então concluir que por muito valor que tenhamos - ou que acreditemos ter - o nosso papel em contexto desportivo, nomeadamente no futebol, é secundário. 

Podemos ser os melhores Fisioterapeutas do Mundo... Mas se a bola não entrar, vamos descer de divisão.


Como diria o lendário Tim Gabbett e companhia:

"While important, the sports medicine team are there to support athletes and coaches, not vice versa. These are sports clubs, not laboratories."

Seven tips for developing and maintaining a high performance sports medicine team (2017)


Se quiserem ser Fisioterapeutas no desporto, preparem-se para trabalhar nos bastidores, longe dos holofotes. Tão importante como qualquer competência técnica ou científica, é a característica de humildade.

Então... Sejam humildes, mas saibam o que valem.

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