Invasão na Fisioterapia

09-07-2022

O Enquadramento 

Recentemente, está muito na moda a integração de estratégias de intervenção invasivas na prestação de cuidados de saúde por Fisioterapeutas. A isto chama-se "Fisioterapia Invasiva", que aqui definirei como sendo a "utilização de ferramentas (neste caso, uma agulha) introduzida na pele e com ação em profundidade" [1]. Irei cingir-me apenas à utilização destas estratégias em âmbito músculo-esquelético.

Esta perspetiva de inovação é compreensível, e em boa medida salutar até determinado ponto, uma vez que como David Nicholls explora no seu livro "The end of Physiotherapy", a verdade é que principalmente quando comparada com outras ocupações na área da saúde, a Fisioterapia ainda está na sua adolescência, período naturalmente marcado por muitas lutas internas à procura de 1) uma forma intrínseca de ser e estar compatível com os seus próprios valores e interesses e 2) uma legitimidade e validação externas que permitam a sensação de valorização e realização. Esta marca de busca identitária - por exemplo através do surgimento de novas áreas de intervenção - é muito importante, porque para além de assinalar a vivacidade da classe e dos seus intervenientes, explora novas avenidas na prestação de cuidados de saúde que podem aportar valor clínico e social.

Contudo, não podemos automaticamente assumir que "novo é bom" - a isto chama-se a falácia da novidade. O que devemos fazer é uma ponderação concreta e cuidada das implicações, benefícios e consequências de uma (e qualquer) mudança na forma como prestamos cuidados de saúde, garantindo que ela é fonte de uma melhoria nos outcomes clínicos das populações com quem intervimos, e que cumpre responsabilidades éticas entre pares, seja intra ou inter-classe - porque a tomada de decisões irrefletidas pode até parecer (e de facto ser) boa ideia no início, mas podem surgir revés inusitados ao longo do processo.

Aquilo que tentarei aqui fazer é essa reflexão - limitada pelos meus viéses e pela literatura de que (conheço e) disponho de momento - de porque é que acho que esta integração de estratégias invasivas não só não constitui uma extensão de valor à algibeira terapêutica dos Fisioterapeutas, mas antes pode constituir um perigo para a imagem social e de classe da Fisioterapia e ser contraproducente se aquilo que queremos é ver o nosso papel relevado de forma autónoma e em equipa.


Disclosure de Conflito de Interesses

Importa começar por declarar que não tenho qualquer conflito de interesses nesta matéria. Licenciei-me em Fisioterapia em 2017 (e lecciono atualmente) numa entidade de ensino superior que hoje inclusivamente lecciona formação avançada nesta área, mas com a qual não tenho qualquer ligação.

Nunca senti, não sinto, e não vejo atualmente forma de como acrescentar esta ferramenta ao arsenal terapêutico dos Fisioterapeutas pode aportar valor real - sensação que advém da ausência de literatura (e, a meu ver, plausibilidade) associada a esta estratégia de intervenção. Estou, contudo e como sempre, altamente motivado a reconhecer o oposto caso me seja demonstrado que existem de facto benefícios, ou seja, estou absolutamente disposto a mudar de posição quanto à utilidade destas estratégias, o que ainda assim depois não implica que as passe eu próprio a utilizar - mas a discussão é do âmbito de classe, e não pessoal.

Não pretendo partir de uma linha argumentativa de superioridade moral - o meu objetivo único com esta reflexão é a melhoria dos cuidados de saúde dos pacientes, mas que acredito que quem defende o oposto de mim também partilha. Por este motivo, o propósito e âmbito da discussão deve ser deontológico e técnico-científico, e não pessoal com recurso a falácias como strawman ou de sunken cost (muito comuns em discussões deste género). 

Assim sendo, não tenho qualquer relação prévia, emotiva ou identitária, com ferramentas de intervenção invasiva no Scope of Practice da Fisioterapia, nem a favor nem contra elas. 


A terminologia

O primeiro erro começa com a forma como são disseminadas e marketizadas estas estratégias.

A ideia de "Fisioterapia Invasiva" pressupõe que existe uma forma de prestação de cuidados de saúde, providenciadas por Fisioterapeutas e que estão sob o chapéu de conhecimento da Fisioterapia, cujo racional responde a uma forma independente de prestar cuidados de saúde (neste caso, com estratégias invasivas). É a mesma coisa que referir "Fisioterapia Manual" ou "Fisioterapia Eletrofísica" ou "Fisioterapia por Exercício" - nada disto é feito (sensatamente) porque todos sabemos que a Fisioterapia é uma forma de pensar a saúde, enquadrando a pessoa num contexto, com recurso a inputs multidisciplinares, e que mesmo dentro de apenas uma disciplina, é multimodal. Ou seja, a Fisioterapia não pode ser considerada invasiva (ou não) em si mesma - ela utiliza estratégias de diferentes âmbitos para melhorar os indicadores de saúde da pessoa. A discussão é se as estratégias que usa são de facto suas ou não (já lá chegaremos). E já agora, pegando neste aspeto, não ouvimos Médicos ou Enfermeiros, que estão por definição habilitados a executar procedimentos invasivos, a referir (mais uma vez, em casos em que há lucidez e sensatez) que vão fazer "Medicina Invasiva" ou "Enfermagem Invasiva" - porque o "invasivo" não define a prestação de cuidados que vão prestar.

Um pressuposto perigoso que isto abre é a ideia de que as pessoas podem fazer "Fisioterapia Invasiva" de forma independente - depois andamos a queixar-nos acerca da usurpação de funções, quando não compreendemos que a disciplina da Fisioterapia é em si complexa e multimodal, e tentamos simplificar uma atuação profissional a uma intervenção única. Abrimos espaço a que qualquer pessoa pode dizer que faz "Fisioterapia Invasiva" com qualquer outro profissional porque aquilo que fez foi "o mesmo" que lhe foi vendido por um Fisioterapeuta. É mais sexy vender "Fisioterapia Avançada" ou "Fisioterapia Invasiva" do que apenas "Fisioterapia", compreendo isso - mas importa deixar claro que estas conceptualmente não são nada em concreto, e  operacionalmente nada têm, quando usadas exclusivamente, de Fisioterapia.
Neste aspeto, e mais uma vez compreendendo a necessidade de se vender estas estratégias assim, principalmente aos pares  pela novidade formativa que elas constituem, a verdade é que não sabemos que tipo de alteração no léxico de literacia de saúde estamos a induzir em profissionais e populações em que intervimos ou a quem vendemos os nossos serviços quando dizemos que a partir de agora temos um canudo em "Fisioterapia Invasiva".

Não me entendam mal, existem especializações dentro da Fisioterapia - mas estas dizem respeito às populações-alvo, a conhecimento de base, e a soft skills, com as quais pensamos a profissão e a forma de estar nela: por exemplo os âmbitos de intervenção em contexto hospitalar ou desportivo, em populações geriátricas ou pediátricas, ou em neurologia ou músculo-esquelética. Em nenhum destes casos a Fisioterapia pode ser compartimentalizada nas suas partes; por isso é que por um enfermeiro saber as "técnicas" todas do Fisioterapeuta não o possibilita de ser Fisioterapeuta: porque o todo é maior que a soma das partes.


O Scope of Practice e o contexto cultural

Esta ideia de que cada profissão tem a sua área de intervenção específica e na qual não é substituível por outra só porque esta vende as mesmas coisas devia ser-nos particularmente querida - estamos (ou devíamos estar) sensibilizados pelo histórico de sofrermos com a usurpação de funções de que somos frequentemente alvo.

A realidade é que, atualmente, existem já profissionais cuja formação base e áreas de intervenção abrange a utilização de procedimentos invasivos, independentemente do contexto. Se falarmos de contexto hospitalar agudo, o enfermeiro pode fazê-lo; se falarmos de contexto músculo-esquelético, o médico pode fazê-lo. 

É claro que esta abrangência de intervenções depende do contexto cultural em que os respetivos profissionais estão inseridos, desde as expectativas da entidade patronal, aos pacientes, à efetividade das medidas e da sua relação com o contexto. Por exemplo, fisioterapeutas do NHS no Reino-Unido podem explorar formação avançada e complementar em intervenções farmacológicas. Também a World Physiotherapy (antiga WCPT), e outras entidades nacionais, têm vindo a tentar incorporar e regular a integração destas ferramentas invasivas no Scope of Practice da Fisioterapia [1].

O alargamento do Scope of Practice do Fisioterapeuta é atualmente um dado adquirido (apesar de o sentido em que ele acontece não ser) contudo não existem dados robustos que garantam que este tem vindo a providenciar uma melhoria significativa nos outcomes clínicos ou na poupança de recursos [2] (salvaguardando que a estratégia de caráter invasivo que dispunha de literatura e que foi analisada foi a infiltração medicamentosa).


O grau de "invasão" das estratégias deve ser considerado um espectro (imagem abaixo). Isto levanta questões sobre se nos permitirmos a nós mesmo a integração de estratégias invasivas na nossa atuação, até quando é que a "invasão" é permitida? Para além disso, não deixa de ser curioso que criticamos (e com muita razão) os médicos por tentarem sempre "impingir" intervenções invasivas (como cirurgias) quando na realidade quando olhamos para a sua efetividade, e quando comparadas com estratégias não-invasivas (a que na investigação disponível chamam, inacreditavelmente Fisioterapia), estas não aportam valor claro em quase nenhumas circustâncias [3] - aí puxamos dos galões e dizemos (com razão) que se a estratégia, sendo invasiva e implicando mais riscos, não é superior, então porque não se opta simplesmente pela menos invasiva? Mas depois trazemos a nós a utilização de estratégias (minimamente) invasivas, negligenciando todo o racional utilizado anteriormente. 

É quase como se o fizéssemos com os interesses económicos de classe (mais coisas para vender!), e não com os benefícios clínicos para o paciente, em mente...

Não deixa também de ser curioso que esta tentativa de avanço por parte dos Fisioterapeutas em adquirir competências, e portanto aumentar a integração de estratégias invasivas na sua intervenção, vem acompanhando uma tendência de aqueles que poderiam de facto estar a usá-las, os médicos, tentarem gradualmente reduzir a sua utilização, advogando cada vez mais o recurso a exercício e gestão dos pacientes em detrimento daquelas que eram tradicionalmente as "suas" estratégias de intervenção. Será que tem a ver com o facto de estas últimas serem aquelas que resultam?


O racional de utilização

Contudo, e apesar dos pontos anteriores, as linhas argumentativas que me causam frequentemente mais espanto são as justificações clínicas para a integração das estratégias invasivas na Fisioterapia. Mais uma vez, importa realçar que me refiro à utilização de estratégias invasivas num contexto de intervenção músculo-esquelética, que podem envolver desde condições traumáticas/ortopédicas a condições inespecíficas.

Não tenho conhecimento de literatura proveniente de níveis elevados de evidência científica que explore a eficácia/segurança destas ferramentas, mas importa referir que, numa análise honesta, a proposta de quem advoga a utilização destas ferramentas não foi nunca de se utilizar unicamente este tipo de abordagens, mas sim de as incluir num plano de intervenção multimodal - a discussão passa então por analisar os racionais de intervenção e perceber se de facto utilizar estas estratégias como coadjuvantes pode implicar algum benefício.


Condições Inespecíficas

Comecemos pelas condições inespecíficas, cuja análise é mais simples. Estas inespecíficas dizem respeito a apresentações clínicas nas quais a associação entre as queixas da pessoa e o estado do tecido é muito dúbia ou inexistente (o que não é o mesmo que dizer que não há nociceção local), e nas quais é particularmente difícil estabelecer uma relação estrutural causal para a experiência de dor da pessoa.

Atualmente, já temos informações mais que suficientes (corroboradas pela epidemiologia) para afirmar que intervenções que se sustentem num racional puramente biomédico não resultam para reduzir ou eliminar a dor nestas condições. Assim, torna-se particularmente fácil de desmontar como este tipo de intervenção, que tem inerentemente um foco "curativo" ou "corretivo" numa estrutura/lesão, se torna não só inútil, como potencialmente contraproducente para a resolução da condição clínica.


Tendão

As condições do tendão (tendinopatias) são algumas das quais têm mais reports anedóticos de sucesso através de intervenções de caráter invasivo. 

Normalmente nestas circunstâncias, o que acontece é que um atleta apresenta-se com queixas localizadas no tendão e com características compatíveis com tendinopatia,  sendo-lhe dado este diagnóstico a partir da imagem que é recolhida aquando da avaliação. O problema neste racional é que sabemos através do modelo proposto por Jill Cook e colegas obtido da sua investigação em pessoas com/sem tendinopatia [4] que a resolução da patologia do tendão não é uma condição necessária para a resolução da clínica (ou seja, não é um fator de prognóstico), uma vez que sabemos (já há algum tempo) que a presença de achados imagiológicos não se correlaciona com a presença de sintomas (nem em intensidade, nem em duração [5]). Assim, do ponto de vista da melhoria da condição, parece ser irrelevante focar a nossa atenção na melhoria do tecido tendinoso (através da reversão da sua degeneração - que inclusivamente se acredita que não seja possível a partir de determinado ponto) para que o atleta volte a treinar e competir [6].

Expectativa dos Fisioterapeutas vs Realidade na gestão/reabilitação de atletas com tendinopatia
Expectativa dos Fisioterapeutas vs Realidade na gestão/reabilitação de atletas com tendinopatia

Relembro que o propósito aqui não é deixar explícito que de facto a intervenção não ajudou a pessoa que a recebeu, pelo contrário. No caso em específico das condições tendinosas, é ´muito mais aquilo que não se sabe do que o que se sabe (podem ler mais sobre isso aqui https://fisioterapia-desportiva-com-evidencia.webnode.pt/l/a-historia-por-contar-dos-tendoes/ ) - contudo, aquilo que parece ser claro é que a intervenção não resulta pelo racional proposto. Aliás, algo que é muito frequente acontecer é que o recurso a este tipo de intervenção provoca muitos sintomas e muita limitação funcional, implicando uma gestão forçada da carga de treino a curto-prazo, o que é também compatível com uma redução dos sintomas. A juntar a isso, aquilo que decorre comummente da prática clínica é que o follow-up providenciado é curto, normalmente feito até ao atleta ficar assintomático, sendo que nesse momento é-lhe dada alta e ele regressa aos treinos. Aqui, quando o atleta já não é acompanhado, é quando os sintomas aparecem novamente, fruto da exposição aos fatores de risco e exposição do seu contexto.

Eventualmente mais estudos poderão ajudar-nos a classificar melhor as apresentações clínicas dos atletas que nos aparecem, tornando-nos mais eficazes a saber quando (através do "como") este tipo de intervenção pode (se é que poderá) ser útil. Mas até lá, a ideia de que este tipo de abordagem aporta grande valor clínico é wishfull thinking e é resultado direto, muitas das vezes, da nossa heurística da disponibilidade e do viés de confirmação.


Se é verdade que, aparentemente, este tipo de intervenção parece ser inútil depois de a condição se instalar, onde parece haver algum potencial para ela ser útil é na profilaxia. De facto, existem alguns dados que indicam que pode haver uma propensão especial para atletas que desenvolvem patologia, desenvolverem sintomas [7,8], o que nos levanta questões interessantes acerca da utilização de estratégias para reverter a condição estrutural do tendão (nas quais as estratégias invasivas estão incluídas) antes mesmo da condição se instalar. Se para isto é necessário 1) recorrer a estratégias invasivas, se 2) estas (ou outras, de todo) de facto o conseguem fazer, e se 3) aportam valor do ponto de vista da efetividade ou eficiência, são coisas que precisamos esperar para ver, porque atualmente não temos dados nesse sentido.

Assim, resumindo:

  • A tendinopatia é uma condição de sobreuso e, portanto, de gestão 
  • Não temos dados robustos de que qualquer intervenção (muito menos invasiva) seja de facto muito eficaz
  • A casuística (que, de facto, existe) de relatos de atletas que após recurso a estas intervenções ficam absolutamente assintomáticos resulta de heurísticas e viéses da nossa compreensão da prática clínica
  • Estratégias invasivas, se de facto fizerem aquilo a que se propóem (o que ainda está por provar), é improvável que aportem valor clínico à reabilitação, mas poderão eventualmente ajudar na redução do risco de desenvolver tendinopatia

Lesões Musculares

As lesões musculares são aquelas em que há mais confusão, mas onde ela paradoxalmente me parece mais evidente - e onde as estratégias de intervenção invasiva (ou o marketing que se faz delas) me parece mais inadequado.

Já por diversas vezes vi a venda indescriminada de "sessões de Fisioterapia invasiva" que prometem "o regresso mais rápido e seguro" à atividade desportiva através de intervenções que "aceleram a cicatrização dos tecidos" ou que "melhoram o estado dos músculos após lesão" . Não conheço de nenhuma indicação nesse sentido, e diria mesmo que a plausibilidade nem sequer lá está.

Quando falamos da cicatrização muscular, os mecanismos são (mais ou menos bem conhecidos) bem conhecidos . Já aqui (deslizando para a esquerda a partir de https://www.facebook.com/Fisioterapia-Desportiva-com-Evid%C3%AAncia-796976223836949/photos/1271121313089102 ) discuti um pouco a componente "biológica" da reabilitação de lesões musculares, e como algumas das estratégias "inovadoras" propostas não pareciam ter nada de promissor. De facto, para além de sabermos então como o processo de cicatrização decorre [9, 10, 11, 12], sabemos também que ele depende de mecanismos de um processo inflamatório [13, 14] segue fases mais ou menos estanques em termos de tempo [15] e que são necessárias a uma boa cicatrização do tecido [16].  Mais, e independentemente das questões biológicas (porque não é só disso que se trata) sabemos que não temos tido diferenças significativas no tempo de reabilitação das lesões musculares mais comuns ao longo dos anos, independentemente das estratégias que utilizamos - o que é corroborado pela literatura [17]

Expectativa dos Fisioterapeutas vs Realidade na reabilitação de atletas com lesão muscular
Expectativa dos Fisioterapeutas vs Realidade na reabilitação de atletas com lesão muscular

Contudo, não é sequer aqui que o problema começa. O problema começa antes, no racional. 

A verdade é que basta olharmos para os dados de que dispomos (que, convenhamos, não são muitos) para compreender pela epidemiologia que várias premissas estão erradas. A realidade é que atualmente temos fortes razões para acreditar que a resolução histológica completa da lesão estrutural não é necessária para um regresso seguro à competição (seguro sendo uma "redução da probabilidade de recidiva"), desde que os atletas cumpram os respetivos programas de reabilitação e atinjam os critérios funcionais estabelecidos [18] - isto faz sentido, uma vez que é esperado que um músculo demore (dependendo do grau/magnitude/local da lesão) bem mais que a média de cerca de quase 20 dias que comummente demoram os processos de reabilitação após lesão muscular [19], com alguns estudos a indicarem tempos até 60 dias [20] (que devem ser encarados com cautela porque são estudos animais). Por fim, nem sequer podemos especular que uma cicatrização "ineficaz", inferido através da presença tecido fibrótico no momento do retorno, possa conduzir a piores outcomes e aumento do risco [21].

Assim, resumindo:

  • Estratégias invasivas são atualmente oferecidas como forma de acelerar o processo de reabilitação, quando não há dados que o indiquem
  • Mesmo que sejam capazes de o fazer, o estado da cicatrização não parece ser condição necessária, e muito menos suficiente, para se garantir o regresso seguro ou prematuro à competição

As consequências

Pode haver outros contextos ou situações em que as estratégias de intervenção invasivas são promovidas ou publicitadas, mas a verdade é que da minha experiência estas são aquelas em que há maior oferta. 

Mais uma vez, um último argumento é sempre a questão do "ok, atualmente não tens dados que seja útil, mas isso não quer dizer que não venha a ser, e também pelo menos alargar o leque de competências não faz mal nenhum", Só que, na minha opinião, faz.

Primeiro, convém ressalvar novamente que tenho um viés claro para a ausência de plausibilidade destas estratégias (e, mais uma vez e recapitulando, se de facto forem úteis, já há profissionais de saúde que podem fazê-las). Mas ultrapassando isso, a verdade é que a atual ausência de efetividade traz problemas reais.

  1. Questões relacionadas com a invasão (pun intended) do Scope de Practice de outras profissionais, criando cisões e lutas desnecessárias
  2. A inefetividade das estratégias, mesmo que fossem do core profissional do Fisioterapeuta, leva a que a sua continuidade seja questionado (quanto mais lutar pela sua utilização,,,). Isto aplica-se a tudo: se uma intervenção é ineficaz deve ser descontinuada, e não perpetuada só porque é "nossa"
  3. Mais uma vez, sendo ineficaz em contexto clínico, a sua utilização depleta recursos (temporais e financeiros) que podiam ser melhor entregues noutras intervenções
  4. Enquanto classe, e mantendo-nos na inefetividade da abordagem, iremos estar a negligenciar recursos (mais uma vez, financeiros através do dinheiro gasto em formações e tempo através do tempo dedicado ao estudo) dedicando-os a estratégias que não produzem efeitos reais, colocando toda a classe em claro sub-rendimento
  5. A ausência clara de democratização das ferramentas e a imagem social, porque claramente que para os pacientes parece que Fisioterapeutas que "fazem Fisioterapia Invasiva" são melhores e mais bem equipados que os restantes - e nem todos os Fisioterapeutas podem de facto recorrer ao material (como por exemplo, aparelhos de intervenção ecoguiada) necessário para realizar com segurança estes procedimentos - e, em última instância, nem todos os pacientes podem pagar os procedimento em si. Felizmente, todos nós em alguma altura das nossas carreiras já produzimos resultados clínicos sem recurso a material dispendioso - precisamente porque ele não é necessário.

Conclusão

A Fisioterapia está num tipping-point em que tem de repensar a sua perspetiva - clínica e de classe. A Ordem dos Fisioterapeutas coloca como tema do dia questões identitárias pesadas pela emoção que envolvem, questões essas que sempre estiveram presentes mas que agora ganham relevo porque se tornarão definitivas.

No que às intervenções invasivas diz respeito, não acho que elas não tenham qualquer potencial. Existem lacunas no conhecimento atual (como mencionei acerca dos fatores de risco para desenvolver tendinopatia) que tornam esta uma discussão atual, pertinente e com muito por dizer ainda. Mais, a minha capacidade de análise está limitada àquilo que sabemos (ou melhor, eu sei) hoje - no futuro poderão haver grandes desenvolvimentos, no material ou no conhecimento, que tornem o investimento nesta ferramenta suportado por evidência de boa qualidade, e portanto um cuidado de elevado valor para os pacientes (que podemos discutir, e sou sensivel a esse argumento, se aí não seria tarde demais para os Fisioterapeutas avançarem (?). Contudo, já argumentei do porquê de não acreditar nisto, e de isto não ser um problema para mim, pois sei que a Fisioterapia continua a ter um espaço no cuidado prestado aos pacientes, e o putativo benefício das estratégias invasivas pode ser proporcionado por outros que já o fazem).

Por fim, reitero que não sou anti-estratégias-invasivas, nem nada que se pareça. Tal como noutras estratégias, tenho tendência a utilizá-las mais ou menos consoante entendo ser necessário e produtivo para os meus pacientes - começando no exercício ou movimento, que utilizo sempre, terminando na eletroterapia, que utilizo muito seletivamente, passando pela terapia manual que utilizo com bastante frequência. Contudo, a curva de aprendizagem e o custo de investimento formativo e em material para que de facto isto seja bem feito leva a que muito dificilmente fosse integrar estas intervenções na minha prática clínica - contudo, mais uma vez, a argumentação que gostaria de ouvir, e à qual seria muito sensível, não é para que me convençam a mim a passar a utilizá-la, mas sim a de porque é que esta estratégia será útil para a classe.

Mais uma vez, tento que esta reflexão seja uma análise o mais isenta possível da informação de que disponho. Contudo, podem faltar-me dados ou enquadramento de que desconheça e que sejam factos importantes para mudar a minha opinião. Nesse caso, reconheço a minha falibilidade e, reforço, estou totalmente disponível, e genuinamente interessado, em mudar de opinião.

Em jeito de conclusão, acho que dá para perceber que não tenho uma opinião favorável à integração de estratégias de intervenção invasiva nas áreas de intervenção do Fisioterapeuta. Importa realçar que isto não é o mesmo que dizer que acho que elas são más - é só uma forma de dizer que os riscos (que existem) e o impacto nos resultados clínicos não compensam o esforço e dispêndio de recursos que traria, enquanto classe, garanti-la para o nosso Scope of Practice.


Bibliografia

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[8] McAuliffe et al. (2016) Can ultrasound imaging predict the development of Achilles and patellar tendinopathy? A systematic review and meta-analysis. Br J Sports Med

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[18] Vermeulen et al. (2020) Complete resolution of a hamstring intramuscular tendon injury on MRI is not necessary for a clinically successful return to play. Br J Sports Med

[19] Ekstrand et al. (2019) Time before return to play for the most common injuries in professional football: a 16-year follow-up of the UEFA Elite Club Injury Study. Br J Sports Med

[20] Chargé et al. (2004) Cellular and Molecular Regulation of Muscle Regeneration. Physiol Rev

[21] Reurink et al. (2015) No Association Between Fibrosis on Magnetic Resonance Imaging at Return to Play and Hamstring Reinjury Risk.The American Journal of Sports Medicine

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