Hidroterapia em atletas

09-11-2018

Em contexto desportivo uma das ferramentas que se pode utilizar é a hidroterapia, ou seja, aplicar os princípios do movimento e exercício, mas em meio aquático. De que forma a evidência disponível apoia, e em que situações, a utilização desta estratégia?

Princípios Fundamentais da Hidrodinâmica

Porque é que reabilitar em contexto aquático é diferente de o fazer em contexto normal? Quando se recorre ao meio aquático, o corpo está sujeito a princípios diferentes dos habituais [1], e são esses princípios que determinam a utilidade da estratégia. Antes de analisar o resto, é necessário então abordar estes Princípios.

Densidade 
O corpo humano é, em média, menos denso que a água (0.97 < 1.00), sendo que tecido magro como osso, músculo ou tecido conjuntivo apresentam menos densidade que gordura. Desta forma, quanto mais leve, ou mais atlético for um corpo, menor o seu peso na água.

Pressão Hidrostática 
A pressão hidrostática relaciona-se quer com a pressão do líquido, quer com a profundidade. Esta é a propriedade da água que permite a resolução mais fácil de edemas, uma vez que por 1.36 cm de aumento de profundidade, a pressão aumenta 1mm de Hg.

Flutuabilidade 
Esta é a propriedade que permite a descarga das articulações submersas. Estima-se que quando um corpo está submerso até ao umbigo, descarregue cerca de 50% do seu peso, sendo que quando mais estiver submerso, maior a descarga. Para além disso, a ausência - ou diminuição - da ação da gravidade permite que várias articulações que em circunstâncias normais não conseguissem ser estáveis ou cuja verticalização fosse desaconselhada, o possam fazer em meio aquático.

Viscosidade 
Esta é a propriedade que se refere à resistência que um meio líquido apresenta ao movimento. Na água, esta apresenta resistência e atrito apenas quando o corpo que nela se movimento exerce força, sendo que este atrito cessa e a resistência passa a 0 quando a força também cessa, independentemente do deslocamento que já se encontra impresso. Isto é particularmente útil no caso de se reabilitar estruturas que ainda apresentem dor, uma vez que com a dor e a cessação de contração, o segmento vai ainda assim poder completar o movimento sem a ação da força externa.

Termodinâmica
A água é bastante mais eficiente que o ar na sua capacidade de armazenar ou transmitir a temperatura a que se encontra. Isto é particularmente útil uma vez que permite o relaxamento muscular e diminuir processos álgicos devido à sua capacidade em manter-se quente. Segundo a literatura, diferentes temperaturas são indicadas para diferentes fins terapêuticos.

Uma série de respostas fisiológicas vêm sendo estudadas aquando da utilização de hidroterapia em atletas, mas estas alterações prendem-se essencialmente com a regulação hormonal e renal e, principalmente, com adaptações cardio-respiratórias [2], que não pretendem ser o foco desta análise, prendendo-se esta com a pertinência da prescrição desta devido a condições musculo-esqueléticas (não são contudo negligenciáveis os benefícios que podem advir desta ferramenta em termos de manutenção da capacidade aeróbia num processo de reabilitação).

Por motivos de conveniência, e uma vez que é transversal a todos os desportos, iremos focar-nos na pertinência da hidroterapia em contexto de reabilitação do membro inferior.


Reabilitação no meio aquático

Thein e Brody descrevem uma série de exercícios que podem ser realizados em contexto aquático e que podem acarretar benefícios aquando da sua comparação com programas terrestres, ou com a ausência de intervenção. Exercícios de pontapés dentro de água, especialmente em decúbitos, permitem grandes ganhos em termos de força. Para além disso, propõe a realização de extensão e flexão dos MI's em sentado ou a realização de lunges, squats, ou outros exercícios de fortalecimento. Um dos grandes benefícios da realização destes exercícios neste contexto é a descarga excêntrica potenciada pela água que, numa fase posterior, poderá ser contrabalançada por exemplo pela realização de agachamentos flutuantes (em que o atleta tem de realizar o agachamento em cima de uma plataforma flutuante, empurrando-a) [2].

Kim et al. [3] realizaram um estudo comparativo em lesões agudas do membro inferior, comparando a reabilitação éntre os meios aquático e terrestre.

Para além da diminuição mais rápida da dor referida pelos atletas, estes também melhoraram os seus scores na tarefa de equilíbrio medida através do Biodex Balance System, o que poderá indiciar que, numa fase precoce em que se procura obter ganhos sem despoletar dor, o meio aquático pode ser uma boa ferramenta.

Para além destes benefícios e da sua utilidade nas questões ligamentares, Prins e Cutner também propõem que o meio aquático poderá ser benéfico para a prática de outro tipo de treino como treino de core ou treino de equilíbrio e proprioceção [4].

Heywood et al. numa revisão sistemática de 2016 procuraram reunir a literatura disponível relativamente aos efeitos da hidroterapia no que diz respeito aos ganhos de força no membro inferior. A verdade é que não encontraram evidências que justifiquem a prática desta estratégia, atribuindo isso à deficitária qualidade da aplicação dos pressupostos da hidroterapia [5].


Biomecânica da marcha e corrida na água

A corrida na água permite, aparte dos já mencionados benefícios cardio-respiratórios, uma série de outras adaptações mais específicas como alterações enzimáticas, vasculares e de recrutamento nos grupos musculares utilizados, ainda que o padrão de corrida se mantenha grosseiramente inalterado em ambos [4], para além de que a contribuição isolada de cada grupo muscular é maior devido à diminuição de forças que tem de vencer (por eliminação da gravidade e do peso corporal) [4].

[4]

Contudo, não são expectáveis benefícios na velocidade da corrida [1] uma vez que devido à propriedade de viscosidade, o tempo de contacto com o solo será sempre muito superior ao do solo, implicando que possa haver alterações positivas mas que estes se prendem essencialmente com ganhos ao nível do recrutamento intramuscular.

Num estudo eletromiográfico de Masumoto e Mercer [7], estes investigadores procuraram explorar de que forma se comportavam os grupos musculares dos membros inferiores aquando da tarefa de marcha em meio aquático.

Estes observaram que, para velocidades confortáveis (terrestre 4.8 km/h e aquático 2.4 km/h), os mesmos grupos musculares tinham uma contribuição muito mais pequena em água que em terra, ao passo que, para a mesma velocidade, quase todos os grupos musculares tinham uma contribuição significativamente maior em relação à percentagem da contração voluntária máxima na água que em terra [7].

À partida isto seria benéfico, mas então como relacionamos estes achados com aqueles encontrados por Heywood et al. de que esta não é uma boa forma para se treinar a força dos membros inferiores?

A verdade é que, em 2016, a mesma investigadora Sophie Heywood e o seu grupo realizaram uma revisão sistemática acerca da cinética e cinemática associadas à marcha e corrida em água, e encontraram que, devido à viscosidade do meio aquático e consequentes drag forces (promovido pelo atrito), a velocidade auto-seleccionada pelos indivíduos na água era proporcionalmente mais baixa que aquela em terra e que, devido a isto e como observamos anteriormente, para velocidades que não sejam próximas o suficiente, a percentagem de recrutamento muscular era mais baixa em água que na terra; daí podermos aferir que não é uma boa forma de promover o recrutamento muscular.

Para além disto, Miyoshi et al. [8] observaram que em meio aquático a articulação da tibio-társica se encontrava em grande parte ausente da ação de carga, o que é condizente com os achados de ausência de atividade estabilizadora da sua musculatura, e que, em termos funcionais, havia um desajuste daquela que era a mecânica de recrutamento motor entre os meios aquático e terrestre.


Veredicto

Não existe muita literatura disponível acerca da pertinência ou utilidade da hidroterapia em contexto de reabilitação desportiva. Muitas das conclusões foram tiradas de populações homgéneas mas inespecíficas, que não é de todo o caso da população desportiva.

É universalmente bem aceite que uma intervenção precoce pode aumentar grandemente a sua eficácia e eliminar efeitos indesejáveis da inatividade do atleta. Contudo, nem sempre o atleta está apto, ou auto-motivado, para o início de um processo de reabilitação ortodoxo, havendo casos em que as suas capacidades ditam um período de descarga articular reduzida ou de diminuição da atividade muscular.

De forma a conjugar todos estes fatores, a hidroterapia parece fornecer uma excelente ferramenta para a intervenção. Para além de proporcionar uma diminuição da carga exercida sobre as articulações submersas por diminuição da ação gravítica, esta é útil ao modular a atividade muscular, permitindo ao próprio atleta a gestão da dor, sendo que o recrutamento motor pode cessar imediatamente a qualquer altura em que esta apareça, permitindo ainda assim o movimento completo.

É no entanto importantíssimo reconhecer as limitações que a hidroterapia coloca, como a reduzida atividade muscular que, em condições normais, esta promove. Daí, é fundamental olhar para ela como um complemento que, a prazo, pode proporcionar um estímulo temporário altamente favorável, minimizando as complicações da paragem, permitindo o início precoce da atividade e da consequente progressão da intervenção, mas não podendo ser utilizada como treino.

Desta forma, a literatura relativa à hidroterapia parece ser unânime em considerá-la, quando utilizada de forma consciente, um excelente auxílio à reabilitação numa fase precoce, sendo, assim que possível, realizada a progressão no plano de reabilitação.

Assim sendo, e tendo em consideração que o recurso ao meio aquático deve fazer parte de uma progressão de exposição ao movimento e exercício, Prins e Cutner [4], propõem 3 tipos de prescrição e progressão de exercícios: 

  1. Molhado para seco: quando o atleta teoricamente não tolera a carga nas articulações que estão a se alvo de intervenção (regra geral nas articulações do membro inferior ou coluna);
  2. Seco para Molhado: realizado quando, após inadaptação por diversos fatores ao meio térreo, o atleta tem de passar para meio aquático;
  3. Só Molhado: quando, por opção ou inadequação ao meio térreo, o atleta necessita de fazer toda a reabilitação em meio aquático [4].

Bibliografia

[1] B. Becker, "Aquatic Therapy: Scientific Foundations and Clinical Rehabilitation Applications," Physical Medicine & Rehabilitation, pp. 859-872, 2009.

[2] J. M. Thein e L. T. Brody, "Aquatic-Based Rehabilitation and Training for the Elite Athlete," Journal of Sports Physical Therapy, pp. 32-41, 1998.

[3] E. Kim, T. Kim, H. Kang, J. Lee e M. K. Childers, "Aquatic Versus Land-based Exercises as Early Functional Rehabilitation for Elite Athletes with Acute Lower Extremity Ligament Injury: A Pilot Study," Physical Medicine & Rehabilitation, pp. 703-712, 2010.

[4] J. Prins e D. Cutner, "Aquatic Therapy in the rehabilitation of athletic injuries," Clinics in Sports Medicine, pp. 447-461, 1999.

[5] S. Heywood, J. McClelland, B. Mentiplay, P. Geigle e A. Rahmann, "The effectiveness of aquatic exercise in improving lower limb strength in musculoskeletal conditions: a systematic review and meta-analysis," Archives of Physical Medicine and Rehabilitation, 2016.

[6] R. P. Wilder e D. K. Brennan, "Fundamentals and Techniques of Aqua Running for Athletic Rehabilitation," J Back Musculoskel Rehabi, pp. 287-296, 1994.

[7] K. Masumoto e J. A. Mercer, "Biomechanics of Human Locomotion in Water: An Electomyographic Analysis," Exercise and Sport Sciences Reviews, pp. 160-169, 2008.

[8]T. Miyoshi, T. Shirota, S.-I. Yamamoto, K. Nakazawa e M. Akai, "Functional roles of lower-limb joint moments while walking in water," Clinical Biomechanics, pp. 194-201, 2005. 

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