Considerações sobre Ciência, Epistemologia, Humildade e Fisioterapia

15-06-2018

O Fisioterapia Desportiva com Evidência procurou sempre, ainda que fazendo um levantamento do estado-da-arte no que à reabilitação e prática da fisioterapia no desporto diz respeito, assegurar que a prática dos fisioterapeutas é o mais refletida possível. Esse sempre foi, é, e continuará a ser o propósito do projeto.

Como é constantemente relembrado, o Fisioterapeuta no geral e o Fisioterapeuta Desporitvo em específico, não trata livros ou artigos científicos. Ainda que como o título indica este seja o tópico que mais se procura levantar neste espaço, sempre foi realçado que a influência do Fisioterapeuta se prende não só com a existência de evidência científica que sirva de base à prática laboral, mas também que os outros dois pilares que estão subjacentes á nossa atuação têm o seu espaço e merecem, também eles, ter o seu lugar na nossa abordagem e ser motivo de reflexão. Volta-se assim a elencar os três pilares fundamentais da Fisioterapia:

  • Prática Baseada na Evidência: isto diz respeito à forma como a Ciência suporta as estratégias que utilizamos, quer como princípios de trabalho, quer como procedimentos na avaliação e/ou intervenção.
  • Clinical Expertise: esta diz respeito à forma como o Fisioterapeuta é capaz de raciocinar e aplicar determinado campo de conhecimentos, tedo em consideração a sua formação, a sua construção de prática clínica e há quanto tempo a desenvolve.
  • Crenças do Paciente: na base do atual modelo proposto para qualquer abordagem em Saúde está o modelo biopsicossocial. Não apenas aquele que o é na teoria, mas sim aquele que o é na prática; a forma como o indivíduo - que é o nosso paciente - tem um corpo constituído por tecidos, lesados e funcionais, ou não, e cujo comportamento e ação sobre o meio que o rodeia se prende não só na forma como este o influencia, mas também na forma como o próprio paciente o interpreta, o que implica que, como qualquer coisa sujeita a interpretação, este critério seja altamente subjetivo.

Epistemologia é uma disciplina filosófica que se prende com o estudo do conhecimento. Esta defende que o conhecimento pode ser adquirido de uma de duas formas: empírica, ou seja, através dos nossos sentidos; ou racional, através do uso da cognição e da lógica.

Na prática, para nós, a epistemologia não é mais então do que a forma como nós, Fisioterapeutas, adquirimos o conhecimento que entendemos ser necessário para avaliarmos e, especialmente, intervirmos nos nossos pacientes.

Podemos dividir este conhecimento, de acordo com a perspetiva previamente descrita, em Evidência Científica (através do raciocínio lógico) e Evidência Clínica (através daquilo que observamos na prática).

Evidência Científica diz respeito àquilo que a Ciência nos diz que faz sentido. A Ciência, um método que se baseia na experimentação através de pressupostos válidos, alcançados através de um processo de pensamento lógico, e na obtenção de resultados de forma consistente e conclusiva, pretende normalizar as nossas práticas laborais e deontológicas, garantindo que o procedimento que aplicamos se propõe, não só a não fazer mal ao paciente, mas como também, com um pequeno grau de incerteza, a fazer-lhe bem - o bem que esperamos que lhe faça.

Science is more than a body of knowledge: it's a way of thinking; a way of skeptically interrogating the Universe with a fine understanding of human fallibility. If we are not able to ask skeptical questions to interrogate those who tell us that something is true, to be skeptical with those in authority, then we're up for grabs for the next charlatan that comes along.

Carl Sagan

Evidência Clínica trata-se do conjunto de conhecimento que um profissional na área da saúde foi desenvolvendo, quer através da sua formação, quer através da sua experiência. Por exemplo, ao trabalhar regularmente com determinada população-alvo, ao observar com alguma consistênia resultados favoráveis ou não favoráveis, ao contactar regularmente com pares, pacientes e profissionais interdisciplinares, todos diferentes entre eles, um Fisioterapeuta pode desenvolver uma perceção, mais ou menos acertada, da forma como a generalidade das pessoas (a generalidade com a qual teve contacto) reage a algo.

If you're older, you're smarter; a 55-year-old garbage man is a million times smarter than a 28 year-old with 3 PhD's... Especially smarter than him! Because this idiot has been thinking about 3 things for the past 15 years. 

The garbage man is 55. Things have happened to him.

Louis CK

Ambos os conceitos são, não opostos, mas antes complementares. De facto, existe até um nível de evidência científica que atribui mérito à forma como determinada aplicação de procedimento é relatada, tendo efeitos ou não (resultados negativos ou ambíguos são muito mais do que irrelevantes para a ciência - são benéficos e, houve mesmo quem o dissesse, o seu propósito real. Karl Popper indagou grandes cientistas como Freud e Einstein e influenciou em muito o desenvolvimento do processo científico).

Aliás, a Ciência enquanto forma de pensar, parte em grande medida da imaginação humana. Alexandria Ptolomeu propôs, pela primeira vez, uma teoria para o modo como o microcosmos da nossa vizinhança está organizado: propôs a teoria Geocêntrica.

Se Ptolomeu não tivesse inicialmente, através dos argumentos indutivos iniciais a partir dos dados de que dispunha, deduzido isto, hoje nunca saberíamos que, afinal, é a Terra que gira à volta do Sol.


Astronomia à parte, o princípio é: Anecdotals, opiniões de pessoas literadas em determinado assunto, relatos da aplicação de um procedimento numa pessoa ou população devem ser valorizados pela comunidade científica. Na Fisioterapia, enquanto profissão com prática baseada na evidência (PBE) isto não é exceção.

Qual o problema da Comunidade Científica? Qual o porquê de não se aceitar que um profissional, que não pensa como nós sugira algo com o qual não concordamos, se sabemos de antemão que esse é o pressuposto base para a nossa forma de pensar?

Os charlatões.

Conforme reflete o quadro partilhado por Adam Meakins, a Ciência é uma disciplina que está fortemente sujeita a escrutínio, aliás, que mais do que aceitá-lo, o promove. Com o ceticismo que ela nos pede, podemos rever o nosso conhecimento e as nossas práticas com maior idoneidade.

Contudo, o que acontece hoje em dia, em grande parte, não é isto. Quando alguém promove uma ideia, muitas das vezes não está a expô-la à aceitação da comunidade científica, mas sim a vendê-la como a mais recente e perfeita receita para o milagre. Sem escrutínio, sem revisão, sem a possibilidade de, de facto, a Ciência aferir se aquela prática, desprovida de interesse pessoal e com o intuito de otimizar a prática profissional e o estado-da-arte, e que começou como uma ideia aplicada a alguém com resultados,apresenta resultados consistentes de forma a que se torne uma prática deontológica bem aceite.

O problema seguinte é quando, continuando nesta perspetiva de procurar enganar quem está ávido de respostas, se continua utilizando o jargão de "cientificamente testado" quando, na verdade, o bom da propagação da Ciência começa a ser o seu mal: a sua disseminação permite que qualquer um, com acesso a qualquer coisa, brilhe no mundo científico.

Estudos metodologicamente pobres, estatísticas duvidosas, reflexões com premissas questionáveis, conclusões distorcidas e sem referência a conflitos de interesse...

A Ciência não é então mais do que uma forma de rever as práticas que determinada área de interesse pratica.

Mas para a Comunidade Científica, nunca se esqueçam: a vossa forma de pensar prega a humildade. 


Considerações

Para a Comunidade Cientifica

  • A vossa forma de pensar baseia-se e promove o pensamento crítico. 
  • Pede-se que vocês, os críticos e revisores de boas práticas, sejam pessoas idóneas, não só com a possibilidade de educar populações e normatizar comportamentos, atuem mais como educadores e menos como juízes.
  • A Ciência não ridiculariza ideias! Pelo contrário, acolhe-as, passando-lhes depois o filtro do escrutínio e da reflexão ponderada.
  • E lembrem-se. Para a Ciência não há dogmas. O que ontem era verdade hoje é mentira. O que hoje é verdade poderá amanhã ser mentira. Isto implica que um dos grandes pressupostos da Ciencia seja a HUMILDADE. De admitir que não sabemos tudo e de que, amanhã, poderemos estar errados.

Para os Pensadores Pioneiros

  • É necessário que as ideias venham de alguém, e não há motivo para que não venham de vocês. Se identificaram, na vossa prática e com pressupostos verdadeiros, que determinado raciocínio pode ser útil, utilizem-no. Se é evidente que um procedimento com base nesse construto tem resultados bons, demonstrem-no aos pares.
  • Aceitem a crítica de forma construtiva e utilizem-na para melhorar. Se estão certos daquilo que dizem, rebater argumentos contrários só pode beneficiar-vos.
  • Permitam que a vossa ideia seja testada. Da mesma forma que a Comunidade Científica espera idoneidade da vossa parte, esperem compreensão e crítica produtiva por parte desta.

Por fim, lembrem-se

Isto não é uma guerra para ver quem tem razão!

O que nós procuramos fazer é sermos ótimos nas nossas práticas. O que nós queremos é aprimorar os cuidados de saúde que prestamos. O que nós queremos é uma comunidade informada, anti-enganos, anti-irreflexão, que avança de forma sustentada, mas que avança. Para isso é preciso quem crie ideias, e é preciso quem as teste.


Mas fica também uma reflexão...

Esta é a linha da Fisioterapia. Nela, estão condensados todos os nossos princípios, todas as nossas formações, todos os conceitos que dominamos e que transmitimos, toda a nossa prática - na avaliação, na intervenção, e no contacto com o próximo.

Desta linha, qual a percentagem que dedicam a cada um dos pilares bases dos nossos domínios? Deveríamos, enquanto classe, repensar a ponderação de cada um deles? E eu, enquanto indivíduo?

Pelo bem da Fisioterapia e, consequentemente, dos nossos pacientes, percamos algum tempo a pensar nisto.

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