Fisiotera-uto-pia
Olá. Esta é a Carla.
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A Carla é uma jovem Fisioterapeuta.
A Carla licenciou-se há meia duzia de anos. Sempre quis ser Fisioterapeuta no Desporto e conseguiu-o. Hoje, é Fisioterapeuta num clube de futebol de elite.
A Carla sempre sonhou em poder influenciar a forma como os atletas perspetivavam a sua vida profissional. Enquanto fisioterapeuta e capacitadora, a Carla sempre tentou que o Fisioterapeuta no Desporto fosse muito mais do que alguém que dava massagens. Hoje, é altamente bem-remunerada, de acordo com a sua formação e clinical expertise, e é uma das peças indispensáveis da estrutura do clube onde trabalha, juntamente com a restante equipa multidisciplinar que trabalha no Departamento Médico - médicos, enfermeiros, massagistas, osteopatas e nutricionistas.
Mas nem sempre foi assim:
Nos primeiros tempos, os atletas tinham muito a mania de sugerir procedimentos. "Dói-me aqui, faz-me uma massagem". "E não vais fazer ultra-som?". "Tu não és fisioterapeuta, és reabilitadora física". A Carla abominava estratégias puramente passivas, e propunha planos de reforço e treino individualizados, que os atletas, de forma relutante, começaram a acatar. Com o passar do tempo, as perguntas passaram a ser de outra índole "E o que achas se alongar?". "Como posso recuperar mais rápido?". "Achas que me podes fazer um plano?".
A Carla, quando começou, não era mais do que uma das muitas pessoas que estava de passagem. O contexto do futebol, e do desporto de alto rendimento, sempre foi o seu sonho, mas ela reconhecia que ia ter muitas dificuldades em integrar um meio com muitos vícios.
Começou por tentar implementar questionários, falhou por desleixo dos jogadores. Procurou reconstruir o ginásio, falhou por obstáculos da Direção. Tentou alertar para a necessidade de controlar as cargas, falhou por divergências com a equipa técnica.
Mas a Carla não desistiu.
Durante os primeiros tempos, a Carla não tinha voz, nem na estrutura nem no Departamento Médico. Os seus disgnósticos e sugestões eram desdenhados, as suas iniciativas eram descredibilizadas e as suas propostas prontamente rejeitadas: nunca nenhuma delas por incongruência científica, mas todas por acomodação ao sistema.
Com o passar do tempo, jogadores, staff e direção começaram a olhar à volta e perceberam que aquilo que os outros clubes de elite faziam, era o que a Carla queria fazer. A Carla sugeria metodologias adequadas ao contexto económico do clube onde estava, e procurava ser empreendedora na comunicação com a Direção. Realizou apresentações aos seus jogadores e procurou reunir periodicamente com a equipa técnica.
A Carla hoje faz isso tudo e é uma prática estabelecida. Mas nem sempre foi assim: as únicas práticas estabelecidas para a Carla quando começou era ficar até mais tarde a varrer o departamento médico, a esvaziar a banheira da crioterapia e a arrumar tudo para chegar no dia seguinte e ter tudo arrumado.
A remuneração da Carla eram ajudas de deslocação. Era a primeira a chegar e a última a sair. Quando chegava a casa, ia ler sobre o estado-da-arte. A Carla fazia coisas que ninguém se lembraria de fazer: quando fazia gelo para os jogadores, via a temperatura da água; quando lhes recomendava exercícios para casa, escrevia-os; depois de arrumar e varrer, ficava a escrever o que tinha feito nesse dia.
A atitude da Carla hoje mantém-se, e ela não mudou de clube; antes, foi a atitude da Carla o que mudou o clube. O clube que hoje é de elite era de nível medíocre, mas foi a dedicação, espírito de sacríficio, paixão, interesse e, invariavelmente, a competência daí decorrente que inspirou os restantes. Começaram a reconhecer-lhe competências inigualáveis, e as outras pessoas passavam e ela ficava. Contruiu-se à sua volta um departamento médico forte. Este passou a informar de forma competente a equipa técnica, que se tornou mais competente. Esta competência passou a ser reconhecida pela Direção, que passou a alocar mais custos a todos os departamentos. "A competência paga-se".
A Carla sempre pensou que não devia comparar o seu início do caminho ao final do caminho dos outros. A Carla criou o seu percurso, e como vivia na Fisiotera-uto-pialândia, deu-se bem.
A Carla namora com o João.
Este é o João.
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O João trabalha num Hospital Central.
O João nem sempre quis trabalhar num Hospital. Em tempos, o João queria trabalhar no desporto. Contudo, depois de chegar ao apaixonante mundo do SNS e da aplicação da fisioterapia em entidades públicas, o João não conseguiu deixar de lhe ganhar o gosto.
O João hoje ganha mais que um funcionário público comum, condizente com as suas funções e habilitações. Tem um trabalho estável mas mutável normalmente das 9h às 17h, onde vê em média um a dois pacientes por hora, dependendo da sua (dos pacientes) necessidade. O João é hoje um profissional bastante mais habilitado do que era quando começou, uma vez que tem mais experiência clínica e conhecimento adquirido das formações que foi tirando.
Mas nem sempre foi assim:
Quando começou, o João recebia por procedimento. Recebia 1 euro se aplicasse um ultra-som e 50 cêntimos se fizesse uma massagem. O João odiava o que fazia. Mas o João também sabia que não era Fisioterapia e queria fazer melhor.
Então, o João propôs uma reunião com o chefe de serviço de Medicina Física e Reabilitação, o Dr. X.
O Dr. X trabalhava no Hospital há 20 anos e sempre havia sido assim, com pagamento por procedimento. Para além disso, o Dr. X era um médico influente, com muita reputação e, portanto, com o qual toda a gente receava discutir. O João já tinha ouvido falar do Dr. X e, como todos, receavam o momento fatídico em que teriam de se deparar com ele.
Mas o João era jovem e energético. O João era ambicioso e, acima de tudo, tinha orgulho, gosto, e vontade de exercer Fisioterapia. Então, o João reuniu uma série de documentação, artigos científicos, matéria documental acerca da eficiência da área de estudos, qualidade da sua aplicabilidade global e relatos de profissionais ligados à Medicina Física e Reabilitação que mostravam os enormes ganhos em Saúde de uma intervenção em Fisioterapia competente.
O João encheu-se de coragem e marcou um encontro oficioso com o Dr. X, que diga-se, era o monstro que passava aquelas miseráveis prescrições médicas que diziam sempre os mesmos três ou quatro procedimentos, independentemente do caso.
Quando o recebeu, o Dr. X ouviu o João do princípio ao fim. Só o interrompeu esporadicamente a pedir para lhe mostrar o artigo de que falava ou a perguntar se tinha lá o tal documento. O João acedeu sempre.
No final da reunião, o João saiu de reunião marcada com a Direção do Hospital.
No final da reunião com a Direção do Hospital, o João saiu com um desafio: se provasse, na prática, que o que dizia era verdade, que o Hospital podia não ter prejuízos e obter ganhos em saúde com o seu plano, este podia desenhar um plano para implementar no serviço de MFR. O Dr. X, afinal, não era mais do que uma pessoa interessada em evitar gastos fúteis, alerta para a necessidade de que os seus pacientes ficassem melhor. Só não confiava em profissionais que não se soubessem defender - como defenderiam os interesses dos pacientes, se não eram sequer capazes de defender os seus?
O João, motivando os colegas e com a preciosa ajuda dos restantes profissionais da MFR (em especial do Dr. X)., conseguiu cumprir os objetivos e foi apresentar os resultados à Direção do Hospital. Valeram a pena as inúmeras horas a estudar depois do trabalho, o sacríficio financeiro e pessoal para fazer formações nas horas livres, e o investimento no seu desenvolvimento pessoal.
O Hospital passou a remunerar os Fisioterapeutas convenientemente. Com a redução do número de pacientes por hora para melhoria dos seus cuidados, passou a empregar o dobro dos Fisioterapeutas - naturalmente, devido a uma lógica de progressão, nem todos recebiam o mesmo. Potenciava-se a aposta em jovens fisioterapeutas que recebiam menos mas cuja perspetiva e motivação facilitaram ainda mais a reciclagem de conhecimento. Sabendo disto, o chefe do Serviço de Fisioterapia, o João, propôs ao Dr. X, chefe de MFR, a formação contínua dos profissionais.
O João, que dantes tinha dificuldades em poder ter a sua vida depois de um dia a aplicar pseudo-Fisioterapia, deu por bem gastas as horas a procurar as patologias médicas identificadas, a ler informação fidedigna, a tentar ir ao ginásio e a ler. O João passou a ter um dia de folga semanal e o horário passou a ser adaptável, gerindo-o com os seus colegas.
Passou a haver uma dinâmica de multidisciplinaridade, potenciada pelo Dr. X - que relembro, é chefe do Hospital Central da Fisiotera-uto-ialândia.
Este é o Zé.
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O Zé vive perto do Dr. X e é Fisioterapeuta há muito tempo. Começou por tirar o bacharelato, e quando surgiu a Licenciatura optou por complementar a sua formação.
O Zé já trabalhou no Desporto e em Hospital. O que sempre apaixonou o Zé foi a possibilidade de ajudar os outros. Ainda que tenha gostado sempre da sua área profissional, o Zé tinha uma perspetiva diferente da Fisioterapia: uma perspetiva de Saúde positiva.
Aficionado de uma motivação de prevenção da doença e promoção da saúde na comunidade, o Zé foi falar com o Presidente da Junta que lhe disse que ele não tinha um projeto ali. O Zé desanimou e culpou a falta de visão do autarca.
O Zé enviou um e-mail para a junta de freguesia ao lado a marcar uma reunião. Na reunião, o Zé falou da sua ideia e saiu com outra nega. Irritado, enviou e-mail ao Presidente da Câmara a marcar uma reunião.
Nem obteve resposta.
O Zé desanimou de vez. Então, em conversa casual com amigos Fisioterapeutas o Zé contou a ideia que tinha tido, que os amigos disseram ser uma ideia muito boa.
"Então porque é que ninguém gostou? Só querem saber do lucro estes políticos."
Mas a perspetiva dos amigos era diferente. Que tipo de projeto tinha o Zé apresentado? Com que fundamentos? Era uma ideia ou um projeto? Era exequível na prática? Que custos teria? Quanto pouparia? Em que consistia? Como funcionaria?
O Zé não sabia nada disso; não ia pensar nisso tudo sem a ideia ser aceite. Os amigos do Zé, conscientes de que o amigo tinha tido uma excelente iniciativa, sugeriram juntarem-se e elaborarem um projeto bem definido cronologicamente, com objetivos claros e financiamento bem delineado. O Zé foi o porta-voz desse grupo de trabalho para falar com o Presidente da Junta que imediatamente reconheceu que aquilo tinha pernas para andar.
O Zé lembrou-se então de que podiam fazer isso a nível nacional. Comunicou com fisioterapeutas portugueses de todos os distritos e fizeram um grupo de trabalho, no qual para além de Fisioterapeutas, estavam economistas, engenheiros e assistentes sociais. Daí saiu um ambicioso projeto de promoção de Saúde a apresentar ao Ministério da Saúde.
O Zé foi ao Ministério da Saúde apresentar o projeto, que recebeu uma moção de aprovação por parte de todos os partidos.
O Zé percebeu então que quando lhe recusaram a sua ideia inicial, o mal não estava em quem recusava, nem em quem apresentava, mas sim no que estava a ser apresentado. O Zé percebeu então que primeiro vem o trabalho e depois o sucesso. O Zé percebeu então que o poder decisor não aprova ideias abstratas, mas sim concretas. E o Zé percebeu que se queria algo, teria de se dedicar a isso; que se não conseguisse explicar algo de forma clara e concisa, então devia estudá-lo melhor. E o mais importante de tudo, o Zé percebeu que a solução para a sua questão nunca esteve em ninguém de fora: mas sim em si e no seu processo de fazer as coisas.
Como é então a vida na Fisiotera-uto-pialândia, e em que é que ela é diferente da vida real?
A diferença não está em que o clube da Carla sempre a considerou fundamental. A diferença não está em que o João sempre auferiu valores avultados, nem que teve sempre a prática clínica que quis. Nem no facto de o Zé ter visto os seus projetos aceites à primeira vez. Nada disso aconteceu também na Fisiotera-uto-pialândia, tal como não acontece também na vida real.
A diferença do Mundo da Fisiotera-uto-pia está nos FISIOTERAPEUTAS.
A diferença está em que tanto a Carla como o João como o Zé acabaram por perceber que o que queriam tinha de lhes sair do corpo, que tinham de sair da sua zona de conforto, que tinham de se expôr ao ridículo. Que tinham muitas vezes de ouvir mais do que falavam, Que tinham de se privar do seu orgulho em prol dos seus objetivos. Que tinham de saber o que era, e o que não era, Fisioterapia. Que ia haver alturas em que a sua saúde económica ia sair ferida em benefício da aprendizagem, da experiência, e do conhecimento que lhes ia trazer beneficios mais tarde.
O que a vida da Fisioterapia num mundo utópico nos ensina é que a diferença de lá para cá não está nas condições de trabalho, mas sim no espírito dos Fisioterapeutas, Ensina-nos que não interessa como começamos, mas interessa muito mais onde queremos chegar. E no que fazemos para o conseguir.
Portanto... Sejamos mais como a Carla, como o João e como o Zé.
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