Fazer os 99%
Nem todos os fisioterapeutas trabalham nos locais com mais recursos, com mais tempo, ou com as melhores condições laborais. Nestes contextos, é essencial que sejamos capazes de "fazer os 99%". Vamos discutir como é que, em ambiente desportivo, o Fisioterapeuta pode alocar os seus (parcos) recursos e, mesmo assim, ser melhor do que poderia ser na teoria.
Quando se trabalha num clube grande, com muito dinheiro para gastar, espaço de sobra para equipar, patrocinadores que oferecem material em troca de publicidade, o que se torna difícil é limitar o material que entra; é difícil evitar que a direcção, a pedido do treinador ou de um jogador, não compre a última moda em eletroterapia ou a última fita colorida que apareceu a ser usada por aquele jogador conhecido na televisão. Se quisermos, usamos. Senão, ninguém se importa, tendo em conta que 10 dias depois chega outra novidade. Em clubes pequenos, contudo não é assim.
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Nestes, é preciso ter muito clara a noção de eficiência, que, segundo a Infopédia da Porto Editora, é
- Capacidade de tornar (algo) efetivo ou real
- Poder de realizar (algo) convenientemente, despendendo de um mínimode esforço, tempo e outros recursos; competência
- Força ou virtude de produzir o efeito pretendido; eficácia.
Em muitos dos casos em que a nossa influência é importante, existem certos padrões de qualidade que nem sequer dependem diretamente da quantidade de recursos físicos ou monetários que temos à nossa disposição. Estes casos podem ser avaliados pela perspetiva de "fazer os 99%": a forma como, ao ter determinados conhecimentos, sabendo empregá-los, poderemos obter resultados consideráveis ao fazer o necessário - e muitas vezes esse estritamente necessário, que garante os resultados que queremos, não precisa de muito. Vejamos.
- Começando do 0, procurando gastar o menos dinheiro possível, em que investiria?
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A verdade é que é esta a realidade de muitas instituições desportivas. Não uma divisão vazia literalmente, mas espaços que necessitam de investimento. E aqui, quando nos perguntam então o que precisamos que comprem, nós não podemos responder "tudo".
É necessário então começar por nos expôrmos numa área para a qual não temos treino e a qual não entendemos muito bem: investimentos. É necessário fazermos pesquisa de mercado e comparar preços. É necessário compreendermos que o nosso investimento tem de ser bastante mais pequeno que aquilo que vamos trazer de benéfico à entidade que nos contratou: afinal de contas, o que pagam por nós é, já isso, um investimento. Precisamos também nós de investir o nosso tempo e o nosso conhecimento de forma a economizar custos.
Investir... Mas em quê?
As grandes áreas em que o Fisioterapeuta é chamado a intervir são aquelas que se prendem com a reabilitação de uma lesão, a prevenção (ou, mais adequadamente, a redução de lesões) e a recuperação após o esforço.
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Comecemos pela reabilitação de uma lesão desportiva (muscular ou articular - vuigo, músculoesquelética).
Sem aprofundar demasiado o assunto, todas as lesões desportivas pressupõem uma fase aguda, onde o movimento é contra-indicado ou próximo disso, uma fase de reforço onde ocorre a diminuição da cinesiofobia e a normalização do nível e da qualidade de movimento através do exercício, e por fim o regresso à atividade desportiva. Para cada uma destas fases, existem critérios que determinam o seu sucesso.
Em que consistirão então os 99% de um processo de reabilitação de lesão desportiva?
Para ilustrar, iremos pegar em dois exemplos: a Eletroterapia e a Hidroterapia.
Material inquestionável em qualquer departamento médico no desporto (e em qualquer contexto, na verdade) é a presença de eletroterapia. Pelo menos um aparelho de TENS, e quem sabe, também um Ultra-som, no mínimo.
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Se fizermos um exercício de reflexão, a eletroterapia não é uma estratégia muito versátil nem se traduz numa utilização muito frequente, já para não falar de muito eficaz. E mesmo que fosse de outra forma, a sua inclusão numa lista de orçamentos iria provavelmente implicar a retirada de outras coisas... Fará parte, então, dos 99%?
Naturalmente que se quisermos reabilitar uma entorse, nada melhor que poder reduzir a carga axial na estrutura afetada. Existirá melhor forma que o fazer na posição vertical do que através do recurso à hidroterapia? Descarga, atividade do membro, benefícios circulatórios, manutenção de uma frequência cardíaca alta, demanda energética alta e influência sistémica. Apesar destes benefícios todos, será que alguém no seu perfeito juízo pediria para que na sua divisão vazia se montasse uma piscina? Muito provavelmente, e ainda que apresentasse benefícios inquestionáveis, a limitação que iria implicar no restante orçamento e a sua influência reduzida em grande parte do processo fazem com que a relação custo-benefício da piscina seja pequeno. Será assim tão diferente da eletroterapia?
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Assim, quando falamos dos 99% no processo de reabilitação, regra geral, temos então de falar em ferramentas que nos auxiliem, de forma barata e clara, em cada uma das fases. E seria interessante pensar em que tipo de materiais precisamos, de facto, para reabilitar convenientemente uma lesão desportiva, e compará-los com aqueles em que o investimento é feito com maior celeridade; isto quando mais facilmente se investe em aparelhos de eletroestimulação do que em material de ginásio.
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O ginásio é uma ferramenta inquestionável para qualquer fisioterapeuta desportivo digno desse nome. Para além deste ser uma parte inultrapassável do processo de reabilitação, este também consitui uma importante parte na pirâmide de redução de lesões: o desenvolvimento de capacidades atléticas.
Então, estando em duas das três vertentes nas quais temos influência, quanto maior e melhor equipado o ginásio, melhor certo?
Na verdade, e tendo em conta a relação custo-benefício, é perfeitamente possível visualizar um ginásio bastante útil para a utilização de um Fisioterapeuta que não implique ter de abrir assim tanto os cordões à bolsa. Numa perspetiva de reabilitação (e, a bem da verdade, em qualquer perspetiva) o que é mais importante é material de treino funcional - e que possibilite trabalhar os movimentos fundamentais nos vários planos - que permita atingir cargas máximas e sub-máximas dos atletas. A partir daqui, o fisioterapeuta terá necessariamente de ser um profissional criativo e incrementar volume através de outras ferramentas menos dispendiosas, ou até mesmo de nenhumas, de forma a poupar recursos; ou então, através das mesmas mas adicionando variabilidade ao treino.
E na redução de lesões? O ginásio tem influência, mas constitui os 99%?
Há que citá-los novamente que nunca é demais: tal como a equipa da Football Medicine referiu, o principal fator de risco para o aparecimento de lesões de origem não-traumática é uma gestão de cargas deficiente.
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Tendo critérios objetivos, e não entrando também muito a fundo nesta temática, a carga dos atletas deverá ser medida numa perspetiva metabólica e mecânica/estrutural. Em ambas, existem indicadores objetivos que nos podem indicar de que forma o atleta está a reagir ao estímulo que lhe está a ser dado em treino. Estes são obtidos através do sistema de GPS.
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Contudo, e estando nós numa perspetiva de redução de custos, é utópico pedir a uma equipa não-profissional que adquira sistemas de tracking sofisticados e delicados de monitorização de carga... Então, se a gestão de cargas são os nossos 99% para a prevenção de lesões, como fazemos?
Existem validadas inúmeras escalas subjetivas e está amplamente estudada a forma como variações nestas se correlacionam bem com indicadores objetivos obtidos a partir de GPS. Assim, não é então desculpa para um Departamento Médico humilde que o GPS seja caro: é perfeitamente exequível criar um sistema de monitorização subjetivo para os atletas responderem de forma digital.
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Se o contexto for humilde ao ponto de nem meios digitais haver... Até em papel é possível fazer este screening periódico.
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Desta forma, conseguimos monitorizar a carga (não de forma perfeita, mas de forma considerável) com recursos próximos de 0. Para além disso, o conhecimento nesta área permite-nos (e, a bem da verdade, impele-nos) a ter uma atitude de sensibilização junto da equipa técnica uma vez que é esta que gere a carga das sessões de treino... O que, mais uma vez, custa exatamente 0 euros.
A outra área em que os fisioterapeutas são constantemente procurados na área desportiva é na recuperação após esforço. Seja no aconselhamento, seja a pedir massagens ou a perguntar se há gelo, os atletas estão conscientes da forma como a fadiga tem uma influência considerável na sua performance.
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A verdade é que aplicar uma massagem ou comprar um rolo miofascial não fica assim tão caro...
... e que mesmo para recorrer à crioterapia podemos simplificar e em vez de pedir as absurdamente dispendiosas máquinas de crioterapia podemos realizar banhos de imersão em água fria...
... mas a verdade é que este é o exemplo perfeito para mostrar que o 1%, mesmo não sendo caro, continua a não ter uma relação custo-benefício assim tão grande.
A verdade é que os fatores responsáveis por acelerar a recuperação são conhecidos e não exigem grandes truques: o repouso (dormir o suficiente, e bem), a nutrição (adequada em quantidade e qualidade) e a condição atlética do indivíduo são os principais fatores responsáveis pelo quão precocemente (e este precocemente tem um limite, não há milagres nem super-homens independentemente do que digam vendedores de aparelhos ou de dietas desportivas) um atleta é capaz de regenerar do esforço realizado.
Manipulando estas, a verdade é que o próprio atleta é capaz de otimizar a sua capacidade de recuperar.
Ora, para além do investimento já referido no ginásio e que nos permite melhorar a condição dos atletas, seja em lesão ou na ausência dela, é necessária apenas uma atitude proativa e profilática de sensibilização dos atletas para a necessidade de aplicar aquele que é vuilgarmente, e não à toa, apelidado de treino invisível - comer e dormir bem.
Mais uma vez, os 99% não representam um custo assim tão elevado.
Princípio K.I.S.S.
Na área da investigação e decorrente filosofia existe um conceito, de resto citado inúmeras vezes por Einstein, denominado "navalha de Occam". Este enuncia que quanto mais simples a aparente explicação, mais provável ela será especialmente quando comparada com outras menos plausíveis.
Na vida diária, podemos transferir este conceito para o Princípio K.I.S.S.
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E transferindo o Princípio K.I.S.S. para a nossa área da Fisioterapia... Limitemo-nos a fazer bem os 99%, principalmente porque os 99% são bem mais simples e ficam bem mais baratos do que aparentam.
Faz mal fazer o 1%?
Não. Mas como a própria percentagem indica, muitas vezes, devido à sua influência tão pequena, torna-se contraproducente e altamente ineficiente investir em muito do material que pensamos ser necessário.
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BOSUS, plataformas de instabilidade, eletroterapia, material de mobilização passiva, rolos miofasciais... a lista continua. Não faz mal ter este material, nem o vamos deitar fora se o tivermos à nossa disposição.
Mas voltemos à nosa divisão vazia.
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Chegámos à conclusão que maior parte daquilo que podemos fazer pelo atleta numa equipa de futebol é mudar a sua mentalidade. O conhecimento da nossa realidade é então a nossa grande ferramenta, e, sem ela, seremos incapazes de perceber o que está dentro dos 99 ou do 1 %, quanto mais de aplicar esta regra. Isto torna-nos susceptíveis de aderir à primeira moda do mercado, e incautos podendo aplicar estratégias cuja pertinência não se justifique. Em ambas estaremos a investir (tempo ou dinheiro) que não se justifica.
Cada um montaria o seu espaço. De forma diferente, com materiais diferentes e ponderações diferentes àquilo que pensa ser necessário. O importante é perceber de que forma podemos realmente otimizar o contexto em que estamos, aproveitando o máximo, gastando o mínimo e aplicando o melhor.
"O futebol é simples. Por isso é que é tão complicado."
Johann Cruyjff
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E isto é o que torna esta profissão de Fisioterapeuta no Desporto verdadeiramente desafiante. Acabando onde se iniciou, lembrem-se:
Ser Fisioterapeuta onde há tudo é fácil. O talento vê-se é quando não temos nada.
E isto inclui montar um Departamento Médico do nada com recurso financeiros escassos. Com conhecimento, e estabecendo prioridades concretas, é perfeitamente exequível... Sejamos capazes de definir e aplicar o 99%.