Estudo de Caso - Lesão Muscular nos Isquio-tibiais
Relato de um estudo de caso de uma reabilitação de uma lesão muscular nos isquio-tibiais - Desafios e Oportunidades de Melhoria.

Mecanismo de Lesão
Durante a primeira fase do jogo, num momento de transição defensiva, o atleta necessitou de alivir uma bola que lhe surgiu à frente durante o sprint. Assim, com a coxo-femural em flexão, estendeu o joelho, agarrando-se de imediato à coxa e tendo de sair.

A possibilidade de o fisioterapeuta observar o mecanismo de lesão oferece largas vantagens para o estabelecimento da sua hipótese clínica. O facto de o mecanismo de lesão se prender com o movimento de extensão do joelho pode ser indicador da estrutura afetada.

Isto foi confirmado de imediato pela referência do local da dor pelo atleta e pela região anatómica à qual o atleta se agarrou no momento da lesão.
Contudo, por toda a envolvência empírica associada a este diagnóstico diferencial, era necessário estabelecer de forma mais rigorosa a condição subjacente, complementando-a com dados objetivos.
Avaliação Inicial (M0)
Atleta, lateral-esquerdo, acima dos 30 anos, com histórico de lesões musculares na região posterior da coxa (bilateral).
O momento da Avaliação Inicial (M0) foi o dia 0 da reabilitação e este foi no dia seguinte após o dia de jogo em que o atleta contraiu a lesão. Neste, foram recolhidos dados subjetivos e objetivos, que foram registados na respetiva Ficha do Episódio de Lesão

Para além de um diagnóstico em Fisioterapia, foi realizado por inerência um diagnóstico estrutural que lhe estava associado. Tendo então em consideração os fatores clínicos e contextuais, estabeleceu-se que se tratava de uma lesão muscular 3a/3b (classificação de Munique) na cabeça curta do bicípite femural (a incerteza prende-se com a incapacidade em localizar, por meios de imagiologia, a localização da lesão na unidade mio-tendinosa - esta foi atribuída através da expectativa relativamente à progressão da semiologia, nomeadamente na dor e implicação na funcionalidade do dia-a-dia).
Estabelecimento de Hipótese Clínica
Tendo então em consideração o diagnóstico clínico, e a ausência de dados complementares imagiológicos - e segundo a proposta de raciocínio clínico para uma lesão muscular (à direita) - foi de imediato traçado o plano de trabalho e também aquela que seria a linha de progressão na intervenção, desde a fase aguda até à fase de retorno à atividade.

Tendo o Cronograma de uma Reabilitação de Lesão Muscular em consideração, dividiu-se então a intervenção em 3 fases:
- aguda (até 4 dias pós-lesão)
- sub-aguda e reforço (entre 4 e 17 dias pós-lesão)
- reforço e return-to-Play (RtP) (depois de 18 dias pós-lesão)
O dia estabelecido a priori para reavaliação foi o dia 18 da reabilitação por se considerar que esta lesão muscular implicaria aproximadamente 20 dias de paragem, motivo pelo qual se estabeleceu uma data que permitisse reavaliar previamente ao regresso à competição.Para este facto, contribui também a urgência da equipa técnica, e especialmente do atleta, em retornar á atividade o mais rápido possível por contingências competitivas ditadas por um jogo importante.
É pertinente realçar que as datas pré-estabelecidas poderão, em função da semiologia e das competências funcionais do atleta, ser alteradas, e que tal facto foi sempre bem estabelecido junto do atleta aquando da comunicação da progressão do processo.
Comunicação com Atleta e Equipa Técnica
Uma das práticas estabelecidas dentro da Medicina Desportiva é a concordância em não estabelecer prognósticos. Concordando, mas tendo em consideração a aparente linearidade da casuística e o contexto da pertinência da recuperação, foi necessário comunicar ao atleta e á equipa técnica o estado da lesão.
Assim, ao invés de se optar por não providenciar um prognóstico, este foi transmitido, sendo no entanto realçada a possibilidade de os prazos estabelecidos inicialmente não serem absolutos, mas antes que estariam, como em qualquer processo, sujeitos a adaptações. Esta comunicação foi, aparentemente, bastante bem aceite por ambas as partes.

Intervenção
Fase Aguda
Na Fase Aguda (ou Inflamatória), foi desaconselhada a toma de medicação anti-inflamatória e desaconselhado o uso de gelo à excepção de a sensação de dor sempre insuportável. Com isto procurou permitir-se o desenvolvimento do processo inflamatório, providenciando uma ferramenta ao atleta para conseguir ainda assim o alívio de dor.
Assim, entre o dia 1 e o dia 5 foram privilegiadas estratégias passiva e ativo-assistidas, reduzindo a utilização de eletroterapia e procurando o processo de analgesia através do movimento, ativo e passivo, e de contrações isométricas. Para além disso, esta foi a fase onde houve maior presença de procedimentos ligados à terapia manual, devido às dificuldades apresentadas pelo atleta mesmo no ortostatismo e nas atividades associadas à vida diária, tendo-se optado principalmente por estratégias em decúbitos.

Nesta fase, uma das procupações foi a utilização do membro não-afetado, não só para a manutenção do seu condicionamento mas também com a expectativa de ganhos no mesmo lesionado, benefícios vasculares, etc.
Para progressão estabeleceu-se o desaparecimento, ou em casos particulares (como a extensão da anca em arco externo) a diminuição, da dor, sendo que esta atingia, nos momentos de maior dor o nível 4/10.
Fase Sub-Aguda
À medida que a fase inflamatória desaparecia e a semiologia e e funcionalidade normalizavam, começaram a utilizar-se mais estratégias ativo-assistidas e ativas, sendo que as poucas estratégias passivas ainda utilizadas eram-no de forma parcial (como por exemplo a utilização de PNF para a normalização da amplitude articular).
Assim, na Fase Sub-Aguda (entre os dias 7 e 12) começaram a estimular-se mais atividades em cadeia cinética fechada para complementar o trabalho de reforço em decúbito, assim como se passaram a utilizar algumas estratégias de recrutamento motor e controlo neural, como atividades explosivas (baixo tempo de ação) de baixa intensidade (exemplo: exercício para técnica de corrida - pliometria).

Nesta fase, após o treino, era desaconselhadoa mas permitida a utilização de gelo local após o treino. AINE's desaconselhados de forma absoluta.
Fase Reforço
Ainda inserida na fase sub-aguda ou de reforço, utilizaram-se estratégias para aumentar a hipertrofia muscular. Foi estabelecido como critério para realizar a progressão dentro desta mesma sub-fase a a bolição da dor á contração, com o atleta a referir ainda alguma sensação de défice de força.
Assim, do dia 12 ao dia 16 passaram a utilizar-se apenas esporadicamente estratégias passivas, sendo que o seu uso se devia a uma ligeira fadiga localizada. Aparte disto, todas as estratégias envolviam exercícios de reforço local e na vizinhança (como algumas progressões do hinge através de modificações na ponte e no deadlift), assim como uma exposição inicial aos Nordic Hamstring Curl.

Também nesta fase deu-se o regreso do atleta ao campo, com alguns momentos de exposição a corrida (ritmo gerido pelo atleta) e alguns exercícios pliométricos dinâmicos.
Return-to-Play
Por contingências contextuais, a reavaliação inicialmente marcada para o dia 18 teve de ser alterada para o dia 22 do processo de reabilitação. Desta forma, e tendo o segundo momento de avaliação (M1) tendo sido marcado inicialmente de forma a monitorizar o estado de evolução e dar alta ao atleta para o treino condicionado com a equipa, foi necessário reorganizar a calendarização.
Iniciou-se o return-to-play previamente a M1, tendo neste sido privilegiada a exposição aos mecanismos de aceleração e desaceleração, assim como a exposição a velocidade máximas e sub-máximas de longas distâncias.
Uma vez que neste contexto não existem valores normativos para a exposição dos atletas a esta atividade, foram utilizadas e adaptadas as guidelines providenciadas pela Football Medicine (podem consultar no seu site em https://footballmedicine.net/return-to-play-after-hamstring-injury-without-gps/ ).

Reavaliação (M1)
Assim sendo, e no dia 22 da reabilitação, o atleta foi reavaliado, tendo apresentado uma clara melhoria da condição clínica e sem indicadores de ausência ou má-cicatrização. Ainda assim, e provavelmente decorrente do estímulo a que o atleta vinha sendo exposto, este relatou uma sensação de fadiga na região posterior de ambas as coxas.

A partir do dia 22, após a alta clínica, o atleta iniciou o treino condicionado durante alguns dias, com a gestão por parte da equipa técnica a ser feito de acordo com as diretrizes providenciadas pelo Departamento Médico.

Estas consistiam na gestão do volume de treino e esforço do atleta, e também do doseamento da exposição do atleta a velocidade de longas distâncias, uma vez que o atleta já teria um trabalho extra neste sentido.

Pós-Regresso à Atividade
Desta forma, tendo a alta clínica do atleta acontecido ao dia 22 da reabilitação, este treinou de forma condicionada durante 3 dias, sido declarado como apto a tempo do jogo importante que se aproximava.
Para além disso, foi prescrito para o atleta um plano de treinos para hipertrofia local e saúde muscular dos isquio-tibiais a realizar previamente ao treino, duas vezes por semana, com a duração de, no mínimo, 6 semanas.

Este será a posteriori adaptado de acordo com a perceção de esforço do atleta.
Exposição a curto/médio-prazo
Nos primeiros tempos após o regresso, o atleta necessitou constantemente da aplicação de estratégias de recuperação por manutenção da fadiga muscular localizada. Apesar disto, este referiu uma sensação de maior confiança e aumento de força local.
É importante manter a monitorização e promover a saúde muscular para controlar o risco de recidiva , quer através da adaptação da metodologia de treino, quer através da implementação do plano de ativação e reforço pré-treino.
Considerações Finais, Desafios e Oportunidades de Melhoria
- A lesão muscular é sempre um processo complicado de gestão para atleta e meio envolvente. O caso em questão implicava uma recidiva de uma lesão passada, pelo que o receio do atleta implicava algum cuidado na gestão emocional do caso. Este demonstrou vontade de ser um interveniente ativo na reabilitação e essa atitude proativa revelou-se fundamental para o sucesso do processo.
- A abertura do Departamento Técnico revelou-se um fator extremamente facilitador da recuperação, não colocando pressão no processo e respeitando, acima de tudo, a saúde do atleta.
- A importãncia tácita na velocidade da recuperação do atleta tornou-se explícita devido ao facto de o atleta ter, menos de um mês após o evento lesional, um jogo com implicações importantes em termos individuais e coletivas. A gestão do processo não foi fácil mas acabou por não se revelar dificultadora no processo.
- Na fase de reforço, a ausência de material que pudesse de facto acrescentar carga ao processo implicou que se pudesse apenas aplicar exercícios com o peso corporal ou aproximado disso. Isso implicou uma diminuição da eficiência da fase de reforço, e uma impossibilidade de manutenção de um trabalho ótimo a médio/longo-prazo.
- A ausência de valores de referência para o atleta em questão implicou que a reabilitação fosse realizada tendo em conta comparações aproximadas: a sensação do atleta, a comparação com o membro contralateral, níveis não-publicados de referências internacionais. Ist confere ao processo menor fiabilidade e maior risco de erro.
- O facto de o atleta chegar à fase final do processo de reabilitação e regresso à atividade com dores musculares generalizadas decorrente da carga aplicada remete para a importância tácita da gestão da carga num processo de reabilitação. Se um atleta que está a treinar normalmente necessita de descanso, tão mais precisa um atleta que vem de lesão, ainda que esta não tenha implicado uma paragem absoluta.