Estudo de caso - Gestão de uma Síndrome Pubálgica

27-09-2019

As Síndromes Pubálgicas são um dos grandes problemas de gestão na Medicina Desportiva: causando dor, esta é de início gradual e tem tendência a piorar., chegando eventualmente à necessidade de retirar o atleta da competição.

Como se pode gerir este tipo de condição, e que considerações se deve ter ao fazê-lo? O atleta deve parar? Se sim, quando? E não parando, o que devemos precaver e como a devemos gerir?

Abaixo, partilha-se um Estudo de Caso onde se realizou a gestão de um atletas com queixas de Síndrome Pubálgica mas que se tentou manter a treinar durante todo o processo.

(Para contextualização, podem visitar a página https://www.facebook.com/796976223836949/photos/a.931831253684778/1123204077880827/?type=3&theater onde poderão encontrar o infográfico ao lado e vê-lo com mais pormenor).


De forma a poderem ver os vídeos sem pararem a leitura, também é disponibilizado abaixo o artigo na íntegra com os vídeos anexados.

Boa leitura!


Data: 26/08/2019

Caracterização do indivíduo

Jogador de futebol do sexo masculino, 20 anos, médio-centro.

Avaliação subjetiva

Queixas incapacitantes durante a prática desportiva na região púbica e adutora, predominantemente do lado direito, com histórico de pubalgias frequentes. Terminou a época anterior com dores, sendo que durante as férias seguiu um período de reabilitação (em Inglaterra) e a semiologia melhorou. Entretanto regressou a Portugal e realizou alguns treinos e jogos, sendo que a dor acabou por regressar (o atleta tem uma rotina pré-treino para realizar contendo exercícios de reforço e de mobilidade, sendo que atribui o reaparecimento dos sintomas a um período em que não conseguiu executar a rotina).

Sem dor em repouso e sem treinar há 4 dias, mas queixa-se de dor (5/10) quando passa muito tempo a caminhar ou quando faz jogging.

Antes de ter de parar, treinava regularmente duas vezes por dia, cinco dias por semana. Está sem treinar há 4 dias, sendo que não sente melhorias nas poucas atividades que continua a fazer. Previamente a parar, as atividades que despoletavam mais sintomas eram mudar de direção (principalmente para a esquerda), sprintar, cruzar e rematar com força.

Despiste de red-flags negativo.

Avaliação Objetiva

Aquando da palpação na região inguinal, refere dor no trígono femural (6/10) do lado direito e na sínfise púbica (5/10). Palpação do sartório dolorosa bilateralmente (2/10).

Amplitudes de movimento muito limitadas na generalidade, com maior ênfase na abdução (Dta 50º e Esq. 65º) e rotação interna (Dta. e Esq. 35º) bilateralmente e rotação externa à direita (30º).

Dor no movimento passivo de rotação externa da coxo-femural, que agrava com a mobilização dos tecidos moles do lado esquerdo.

Dor ao resistido de Flexão da coxo-femural (7/10) e ao combinado de Flexão + Rotação Externa (4/10) com dor a aparecer na região adutora e púbica.

Teste de Thomas com sinais de encurtamento (especialmente na anca) mas sem dor, bilateralmente.

Squeeze a 0 e a 45º da coxo-femural sem dor.

HAGOS questionnaire passado no dia 02/09/2019 com um score de 83/148 = 56%.

Avaliação em Fisioterapia compatível com Sindrome Pubálgico de Etiologia mista, sem lesão muscular estrutural dos adutores.

Hipótese Clínica

As Síndromes Pubálgicas são frequentemente disfunções por sobreuso que despoletam semiologia na região inguinal. Podem ter uma ou ser a combinação de várias entidades clínicas, sendo as mais comuns os adutores, a sínfise púbica, o psoas-ilíaco ou o canal inguinal. Neste caso em concreto, as entidades que pareciam referir maior comprometimento eram a sínfise púbica e o psoas-ilíaco, como pode ser discutido através da reprodução dos sintomas através do resistido de flexão da coxo-femural, mas não do squeeze test, implicando que o adutor poderia não ser das estruturas mais envolvidas. Contudo, e devido à proximidade estrutural e íntima relação funcional, é impossível dissociar todas as estruturas.

A hipótese clínica para gestão do problema passaria por providenciar movimento que implicasse a diminuição do quadro álgico, proceder à reeducação do padrão motor e uma exposição gradual à tarefa de mudança de direção, monitorizar e sensibilizar para a gestão de cargas e adoção de hábitos promotores de uma boa recuperação 


Intervenção

A intervenção para melhor gerir a condição passou por uma abordagem com 5 pontos fundamentais:

  1. Exposição a novos padrões e arcos de movimento
  2. Melhoria da capacidade física (aumento da força do atleta)
  3. Gestão da exposição de carga
  4. Reeducação e exposição gradual aos padrões motores de mudança de direção e corrida
  5. Educação do atleta

1) Exposição a novos padrões e arcos de movimento

Numa primeira fase aquilo que se procurou foi reduzir a influência e o impacto que a condição implicava. Principalmente nos primeiros dias, foram utilizadas algumas estratégias onde se integrou a terapia manual, através da mobilização fisiológica ou da mobilização de tecidos moles aquando do movimento. Para além disso, utilizou-se ainda a manualidade para oferecer resistência em arcos de movimento externos, para além da realização de PNF de forma a conseguir um ganho de amplitude que, ainda que a curto-prazo, permitiria de seguida colocar carga nessa nova amplitude conquistada durante os exercícios de reforço. Rapidamente este tipo de estratégias foi substituída por estratégias ativas para ganho de mobilidade na fase inicial da sessão através de exercícios específicos para mobilidade da anca. Alguns dos exercícios utilizados nesta fase foram o Bretzel, o 90/90, o Lunge no máximo de amplitude com extensão da anca e flexão do joelho contralaterais e outras estratégias para alongamento (seguidos de contração) dos adutores, como juntar as plantas dos pés e abrir os joelhos ou promover a rotação externa da coxo-femural com flexão da anca e ambas as pernas e antebraços no chão. Foram utilizadas diferentes variâncias do PNF como suster-relaxar (mediado pelo atleta) ou contração com ação do antagonista. Também foram utilizados alguns exercícios para promover o alongamento dos músculos glúteos e piriforme, em posições como o pigeon, às quais se associava então a contração muscular conforme referido anteriormente.

Para além disto, durante a própria sessão, foram introduzidos movimentos que implicassem a exposição a novos padrões de movimento, como a exploração destes finais de movimento através de estratégias que privilegiassem o controlo voluntário em finais de amplitude de rotações e de abdução da coxo-femural.

2) Melhoria da capacidade física (aumento da força do atleta)

Uma vez que o que acontece frequentemente nas Síndromes Pubálgicas é, conforme discutido, uma exposição acima da capacidade de tolerância biológica dos tecidos, era imperativo neste construto de hipótese clínica aumentar também a sua capacidade, aumentando assim a sua capacidade de endurance e tolerância crónica à carga. Para fazer isto, as estratégias eram simples: expor o atleta a treino de força e à realização de exercícios com resistência externa. Este aumento de força foi feito essencialmente em duas componentes: Força Global (através de exercícios compostos) e Força Específica (destinada a reforçar os músculos frequentemente indicados como entidade clínica para a Síndrome Pubálgica como os adutores ou psoas-ilíaco).

Exercícios de Força Global (exercícios compostos e multiariculares)

Exercícios de Força Específicos (Adutores, Trabalho de Core, Psoas-Ilíacos, etc.)

3) Gestão da exposição de carga

Agora que já estaríamos a tratar de adequar a carga tolerada pelos tecidos através do seu reforço, era necessário também adequar a carga a que indivíduo estava exposto, caso contrário estaríamos a ser contraproducentes; aumentando a carga de ginásio e mantendo a carga de campo, iria provavelmente exacerbar sintomas. Contudo, em condições óptimas o ideal é manter o atleta no seu ambiente natural, o campo, sem o retirar e implicando com isso manter uma série de rotinas e um contexto facilitador de toda a reabilitação: o jogador, ainda que em "reabilitação" continua a ser um jogador e a pertencer a um grupo.

Aquilo que foi hipotetizado então foi que ao retirar o atleta de determinados treinos em dias específicos durante a semana, seríamos capazes de gerir a exposição do atleta.

O micro-ciclo do atleta era composto por cinco dias nos quais ele realizava dois treinos diários (normalmente, o treino da manhã mais intenso e desgastante que o da tarde).

Desta forma, foram tidas as seguintes considerações:

  • Retirada inicial do atleta com exposição a estímulo de ginásio
  • Reintegração em contexto de campo com retirado do estímulo de ginásio
  • Gestão concertada entre campo e ginásio, com as sessões de fisioterapia a servirem como sessões de descarga de treino de campo. Inclusão de dois períodos de folga semanal (o treino do último dia da semana não ocorreu por motivos alheios á programação)
  • Reintegração nos treinos da tarde, com sessões de fisio a servirem para descarga de treino de campo (realização de 2 treinos)
  • Reintegração nos treinos da tarde, com sessões de fisio a servirem para descarga de treino de campo (realização de 3 treinos)

A calendarização ficou a seguinte:

Esporadicamente, e uma vez que o atleta cumpria com os parâmetros a seguir discutidos acerca da sua recuperação, nos finais de micro-ciclo realizava-se uma sessão de pressoterapia, procurando facilitar esse processo.

4) Reeducação e exposição gradual ao padrão motor de mudança de direção

Sendo a região púbica uma região de convergência de uma série de vetores de força devido ao facto de estarem envolvidas diversas estruturas em tarefas motoras complexas, aquilo que se hipotetizou foi que desconstruindo a tarefa, reeducando o padrão motor, e expondo o atleta ao mesmo de forma gradual, se seria capaz de potenciar a realização da tarefa inicialmente sem estar exposto a dor, e posteriormente de forma mais eficiente, melhorando a forma como estas forças atuam e prevenindo recidivas.

Através de treino neuromuscular e estratégias de pliometria, o atleta foi exposto inicialmente a tarefas de desaceleração, progredindo-se gradualmente para tarefas com maior nível de exigência até se chegar a tarefas complexas como inclusão de sobrecarga excêntrica com ciclos de estiramento-encurtamento. 

Desaceleração vertical

Wall Drills

Sled Push

Desaceleração horizontal

Mudança de direção multiplanar  

Por fim, o atleta foi sendo esporadicamente exposto a fadiga em tarefas que normalmente despoletassem dor. Para isto, selecionou-se a tarefa de hop, e o objetivo era o atleta realizar, no menor tempo possível, o maior número de hops que conseguisse. O que era monitorizado era não só este outcome, como também a dor com que o atleta o fazia. Numa fase inicial, a dor no teste foi-se mantendo, contudo o atleta aumentou o score obtido. Na fase final, o atleta conseguiu não só realizar a tarefa sem dor, como também melhorar o resultado do teste.

Exposição a Fadiga  

5) Educação do atleta

Em qualquer caso seria importante, mas principalmente tratando-se de uma condição por sobreuso os fatores contextuais tomam uma preponderância superlativa. Assim, foi dada grande ênfase à educação e capacitação do atleta, nomeadamente em questões como a gestão de esforço, recuperação e necessidade fundamental de um sono reparador e de uma alimentação cuidada, assim como uma (re)hidratação adequada. O atleta cumpriu os pressupostos de forma exemplar, o que não é um fator negligenciável na qualidade e celeridade da reabilitação (bem pelo contrário, terá sido certamente o grande facilitador).


Reavaliação

A monitorização ao atleta foi constante e a supervisão foi contínua, com feedbacks diários acerca da condição clínica, discutindo em conjunto estratégias de gestão de esforço e recuperação. O atleta foi referindo continuamente menos sintomas, inicialmente com a redução nas tarefas que despoletavam dor (passando a ser apenas sprints e remates fortes), tendo numa fase posterior diminuído também nestas, sendo que sensivelmente a meio da última semana o atleta já se encontrava assintomático em todas as tarefas de campo (mesmo em treinos de exposição a todo o tipo de tarefas e com RPE's iguais ou superiores a 8/10).

Na avaliação objetiva, o atleta referia já não ter qualquer dor à palpação, referindo apenas alguma sensação de fadiga generalizada na região púbica (especialmente nos adutores, bilateralmente). Não houve, contudo, uma melhoria significativa nas amplitudes de movimento da coxo-femural. Nos extremos de mobilidade, o atleta deixou de referir dor para referir apenas desconforto proveniente do alongamento, mas o end-feel permaneceu duro.

No HAGOS questionnaire, o atleta obteve o score de 119/148 = 80%. 


Discussão

Alguns pontos importantes a retirar deste processo:

  • Sendo a Síndrome Pubálgica uma condição que se instala de forma gradual e que não implica a retirada imediata do atleta da competição, mas que pode ser gerida juntamente com a manutenção do processo de treino do atleta, pode dizer-se, até pelo histórico, que este caso em concreto já se apresentava com alguma cronicidade associada.
  • Houve duas mensagens principais transmitidas ao atleta:
  1. "A dor não é a medida" - o problema, muitas vezes, é a implicação que a dor tem na tarefa. Para ilustrar isto, explicou-se ao atleta que muitas vezes as pessoas são expostas a dor e que mesmo assim têm de realizar determinada tarefa. Assim, veiculou-se a ideia de que neste tipo de processos muitas vezes o que é necessário fazer é medir esta influência. Assim, a medida do sucesso não seria apenas deixar de ter dor, mas eventualmente também, mantendo-se a dor, aumentar a complexidade e exigência da tarefa com que esta aparece.
  2. "Não há soluções fáceis e milagrosas para problemas complexos e de instalação gradual" - uma vez que a Síndrome Pubálgica é uma disfunção por sobreuso e de incidência gradual, e o atleta compreendendo isto, foi relativamente fácil que ele compreendesse também que o que sairia do processo estaria diretamente dependente da consistência do seu trabalho ao longo do tempo, e que, como em qualquer situação, não haveria milagre nenhum que o Fisioterapeuta, ou alguém, pudesse fazer por ele a não ser ele próprio com o seu trabalho e responsabilidade na gestão da condição e adoção de medidas promotoras de saúde.
  • O atleta obteve alta em M1, sendo que, em condições normais, poderia ter continuado o processo concomitantemente ao seu regresso integral à competição. Este é o benefício de trabalhar inserido numa estrutura desportiva.
  • O regresso à competição de forma integral deu-se menos de um mês após o abandono da competição o que, não permitindo estabelecer relação direta com valores normativos dado que é grandemente dependente do estado da condição aquando da apresentação, permite dizer que a reabilitação foi bem-sucedida uma vez que o tempo inicialmente prognosticado foi à volta de 1 mês (15 sessões, das quais acabaram por se realizar 12).
  • A escolha dos exercícios na fase de analgesia não foi específica. Ao invés, a escolha dos exercícios para a fase de reforço e reeducação do padrão motor, foi específica. Isto é uma assunção importante e que vai de encontro às mais recentes teorias acerca da dor enquanto experiência: o que se pretendeu fazer foi realizar movimento e atribuir-lhe um significado positivo. Neste caso em concreto, e sendo um atleta, tentou combinar-se esta componente com o facto de ele achar a tarefa desafiante, o que muitas vezes pressupunha padrões de movimento e posição controladas voluntariamente que o fizessem sentir a sensação de "trabalho". Posteriormente, e à medida que o quadro álgico ia diminuindo, este ia sendo exposto a tarefas específicas de mudança de direção, sendo que nesta fase, e uma vez que o objetivo de torna-lo mais eficiente nesta tarefa é específico, específico terão de ser também os exercícios utilizados, como exercícios de força, exercícios unilaterais, de sobrecarga excêntrica e pliométricos.

Conclusão

Este estudo de caso apresenta então o estudo de caso de uma Síndrome Pubálgica com resolução positiva e consequente alta clínica através da adoção de 5 medidas que parecem ser a melhor forma de gerir a condição e que darão ao atleta, mesmo na eventualidade de esta reaparecer no futuro, ferramentas para que este seja capaz de a gerir.

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