"Cada macaco no seu galho": mas que galho é de quem?
A confusão está instalada: hoje em dia vemos frequentemente Profissionais das Ciências do Desporto (PCD) a abordarem assuntos que se relacionam com condições de saúde, Fisioterapeutas (FT) a promover acompanhamento especializado na área do treino, e tudo e mais alguma coisa naquilo que diz respeito a áreas cinzentas no espectro reabilitação - performance.
Em mais um tema controverso, é importante esclarecer quem está habilitado a fazer o quê (em termos de espectro de intervenção no global, e na utilização de exercício em particular), quando, onde e como, e em que é que nós Fisioterapeutas nos devemos focar e como abordar esta questão, que é estruturante no papel social da profissão.
Disclaimers
Uma boa forma de iniciar as hostilidades é reconhecer os meus viéses.
Sou Fisioterapeuta de formação base e nunca frequentei cursos de formação contínua ou avançada sobre conteúdos relacionados com exercício, sendo que estou atualmente a frequentar um Doutoramento em Fisioterapia na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto. Sempre exerci enquanto Fisioterapeuta, em âmbitos de atuação que acreditava estarem dentro do meu perfil de competências e nos quais poderia aportar valor, e a minha intervenção sempre se baseou mais na prescrição de exercício, não só porque encaro o exercício como sendo uma das melhores intervenções atualmente disponíveis para uma grande míriade de condições, como também é ela em si mesmo uma intervenção multi-efetiva (quase como uma intervenção "shotgun", com efeitos a vários níveis, desde o fisiológico, ao comportamental). Para além disso, também a população com a qual sempre trabalhei não só tinha um forte viés a favor do exercício, o que o tornou sempre muito intuitivo de aproveitar, como beneficiava diretamente da realização de exercício e dos respetivos ganhos como transferência para os seus objetivos pessoais e profissionais (essencialmente atletas).
Por este motivo, importa referir que não só já ouvi esporadicamente da parte de PCD's o argumento de que estou a apropriar-me das suas competências, mas incrível e paradoxalmente, ouço muito mais frequentemente da parte de Fisioterapeutas o argumento de que "sou Preparador Físico" porque, em termos relativos, uso muito mais exercício que as restantes ferramentas disponíveis (não por ideologia, mas pelos motivos mencionados acima).
No que diz respeito à prescrição de exercício e a quem ela pertence, interessa ressalvar que desde sempre tive uma perspetiva muito "ideológica" do assunto: a meu ver, o Fisioterapeuta era um profissional de Saúde, e o PCD era um profissional do Desporto - o que isto implica é que os primeiros poderiam trabalhar em todo o espectro de saúde das pessoas (que vai desde a sua promoção até à reabilitação), ao passo que os últimos estariam habilitados a trabalhar naquilo que seria o desenvolvimento das capacidades atléticas dos indivíduos, direccionando a sua atuação para a melhoria do rendimento desportivo. Por este motivo, a sua população de intervenção seriam atletas (de elite ou recreacionais) saudáveis à procura de melhorar a sua performance na modalidade em questão.
Na prática, isto levava a que os Fisioterapeutas pudessem trabalhar com indivíduos em todo o seu espectro de saúde (desde saudáveis na promoção de saúde ou prevenção de doença) até "doentes", ao passo que o PCD trabalharia apenas com indivíduos saudáveis (ao nível da melhoria do rendimento). Aqui, reconhecia claramente a vantagem comercial do Fisioterapeuta, sendo mais versátil e tendo claramente a possibilidade de trabalhar com populações mais diversificadas.
A minha opinião original relativamente à aptidão de ambos os profissionais para prescrever exercicio nas diversas fases do espectro de saúde (Figura 2)
Enquadramento Histórico
Sem entrar demasiado a fundo na história e sociologia das ocupações (e correndo o risco de com isso cometer erros), tradicionalmente o acompanhamento de atletas - que remonta já ao séc. V a.C. - sempre foi proporcionado por indivíduos que se identificavam como treinadores dos respetivos atletas, e faziam-no em todos os domínios da sua vida. Só a partir de determinada altura começou a haver alguns profissionais - neste caso, médicos - responsáveis por aprovisionar cuidados de saúde aos atletas; e não foram particularmente bem recebidos, uma vez que frequentemente as suas diretrizes eram paradoxais à metodologia de treino da altura [1], o que colocava em risco o atingimento dos melhores resultados desportivos possíveis.
Avançando até ao séc. XVI, e aproveitando a filosofia e o trabalho de uma série de médicos até à altura [2], é introduzida pela primeira vez o exercício num programa curricular universitário (Medicina), assim como a publicação dos primeiros livros que referem a utilização de exercício (ginástica) como "cura" para as maleitas do corpo [3]. Acredita-se que seja este o primeiro curso daquilo que seria toda a formação percursora da Fisioterapia, e era na altura ministrado por médicos, nas respetivas faculdades de Medicina. O primeiro registo formal da utilização de exercício como instrumento terapêutico remonta ao trabalho de Per Henrik Ling, considerado por muitos o pai do "exercício terapêutico" [4].
Sentido da evidência e Perfis de Competências
E importante, desde já, esclarecer alguns pontos fundamentais:
- Ter utilizado a nomenclatura de PCD e Fisioterapeuta não foi despropositado. É claramente intencional a não-utilização da expressão "profissional de exercício", uma vez que o domínio de uma ferramenta não define uma profissão (assim como o Fisioterapeuta não é o "profissional da terapia manual" quando esta discussão o coloca junto de osteopatas ou outros. Isto também se aplica à nomenclatura de "fisiologista do exercício", que não tendo uma expressão ou enquadramento legal, e se serve para se referir a alguém que sabe de fisiologia do exercício, pode dizer respeito a médicos, PCD's, Fisioterapeutas, cientistas, ou qualquer outro que estude a temática.
- Não existe tal coisa como "exercício terapêutico". O exercício ou é exercício e cumpre os requisitos para que assim seja chamado, ou não é e assim é movimento (que também tem a sua enorme utilidade, mas que é um construto diferente). Ambos têm as respetivas indicações clínicas, e os consequentes outcomes esperados (que podem ser partilhados ou não).
O exercício é, cada vez, uma das intervenções não-farmacológicas mais efetivas a prevenir ou a ser integrada na reabilitação das mais variadas condições ou patologias ao longo de todo o espectro de saúde, populações especiais e/ou faixas etárias [5, 6] - ou seja, é factual que o exercício é uma excelente intervenção: o típico "exercise is medicine". Mas, e ainda que este possa ser um útil e importante aliado, o exercício não é em si Saúde, que é um mal-entendido que é muito comum.
Dizer que um profissional domina a prescrição de exercício nada quer dizer sobre se aporta valor em saúde; em jeito de exemplo, um profissional pode ser ótimo a fazê-lo, e portanto utilizar a prescrição de exercício para tornar um atleta mais rápido (vulgarmente chamado de treino), o que nenhuma influencia tem na melhoria da saúde do indivíduo (pode argumentar-se que, devido à atual definição de saúde e à sua natureza biopsicossocial, a capacitação de o jogador correr mais rápido o torna mais saudável porque melhora a sua participação, o seu bem-estar e a sensação de cumprimento de objetivos de vida - contudo, os riscos associados à exposição e um potencial paradoxo entre risco de lesão e performance suplantarão este benefício).
Por este motivo, dizer que os PCD, porque prescrevem exercício são profissionais de saúde é simplista e redutor - o que em nada belisca a sua possível importância. E já agora, numa nota pessoal, é indispensável a abolição da taxa de IVA para a realização de exercício acompanhado por PCD - resta saber que pessoas o poderiam fazer...
Dito isto, é mais que bem estabelecido que o Fisioterapeuta é um profissional que é responsável e autónomo no que diz respeito à prescrição de exercício em todos os possíveis domínios da sua atividade profissional. Em anexo, o Perfil de Competências do FIsioterapeuta, no qual isso está explícito, para além de um documento redigido pela APFisio (e para o qual tive a sorte de poder contribuir) que pretende capacitar os fisioterapeutas acerca dos saberes necessários para avaliar, monitorizar e prescrever exercício.
Papel, Investimento e Valorização Social
Antes de divagar mais profundamente sobre o que vem a seguir, importa relembrar algo: não tenho qualquer interesse pessoal ou agenda escondida no que diz respeito à prescrição de exercício ser atribuída a um ou outro profissional. Eis os factos importantes:
- A reflexão é macro: não deixarei, enquanto Fisioterapeuta individual João Noura, de prescrever exercício com as populações com que trabalho. Contudo, creio que o que importa é refletirmos enquanto classe acerca desta divisão de funções e da atribuição de papel social a cada um dos profissionais, e qual a nossa contribuição - isto irá definir o tipo e magnitude de investimento (financeiro mas não só) que cada uma das classes profissionais e respetivos modelos de prestação de cuidados irá receber
- Como toda a gente, gosto de pensar que sou útil e que aquilo que faço tem reconhecido valor. Gosto da ideia de que a Fisioterapia é importante e que, portanto, deve ser valorizada por isso em todos os campos. Não sendo o caso, não moldo a realidade àquilo que gostaria que acontecesse.
- O objetivo é a prestação de melhores cuidados de saúde à população; não a agenda sindical da Fisioterapia. Uma vez que se trata de financiamento e investimento público, e cruzando isto com o papel deontológico de prestar cuidados em Fisioterapia, esta análise profunda terá de servir não a Fisioterapia, mas sim a população (que é o motivo primário - e único - de existirem Fisioterapeutas. Ou seja, a Fisioterapia deverá servir o cuidados às populações, e não o oposto; o que isto quer dizer é que encaro o Fisioterapeuta como importante na prescrição de exercício porque estão consumadas duas proposições indispensáveis: 1) é do nosso domínio de competências; 2) é uma ferramenta efetiva.
- Se, após melhor conhecimento científico, 1) estiver cumprido, mas 2) não, a Fisioterapia deve adaptar-se e reinventar-se de forma a otimizar o valor da sua prestação de cuidados. Se, após reflexão interna, 2) for verdade, mas 1) não, deveremos perceber se estamos, com outras intervenções, a providenciar ganhos em saúde.
- No caso de uma dessas situações existir, mas as suas consequências não forem atingidas e a Fisioterapia for considerada redundante, esta deve ser fruto de desinvestimento e abandonada. Onde se lê "Fisioterapia", leia-se outra coisa qualquer.
- Um Fisioterapeuta e um PCD a trabalhar em conjunto, na mesma equipa, são na minha opinião na larguíssima maioria dos casos, redundantes, e é algo ao qual teria tendência a opôr-me (salvaguardando, eventualmente, contextos específicos em entidades desportivas).
"Ninguém procura um Fisioterapeuta para fazer exercício!"
Há uns dias disseram-me uma frase que achei particularmente interessante: "ninguém procura um Fisioterapeuta para fazer exercício!". Isto surgiu a propósito da minha opinião de que era impossível equacionar a prescrição de exercício em pessoas com patologia de base ou a necessitar de supervisão, sem colocar o Fisioterapeuta como um dos possíveis elementos constituintes da equipa.
A realidade é que me parece muito provável que isto seja o caso, e não temos muito mais pessoas a quem culpar do que nós mesmos.
Quando olhamos para a distribuição relativa de quem é procurado/contratado para prescrever exercício ao longo das várias fases do espectro de saúde do indivíduo, podemos ver que existe uma preponderância muito grande daquilo que é o recurso a PCD's. Mesmo nas áreas em que o Fisioterapeuta seria mais habilitado (já para não dizer "o único habilitado"), existe uma integração significativa de PCD's, mesmo atendendo a diversas barreiras que existem atualmente (como a taxa de IVA acrescida ou a sua não-existência em serviços de prestação de saúde),
Percentagem relativa de profissionais a intervir (através da prescrever de exercício) nas diversas condições de saúde (Figura 2)
Em indivíduos saudáveis, seja em âmbito de melhoria de performance ou saúde, parece-me claro que o PCD é frequentemente mais procurado. Este contexto de trabalho é o que vemos comummente acontecer em entidades desportivas (como clubes), centros de treinos para atletas, ou ginásio, com alguma inclusão mesmo destes serviços em contexto de clínica privada.
A partir do momento em que se trata de patologia, passa a haver uma preponderância ligeiramente maior dos Fisioterapeutas, mas que provavelmente não expressa uma procura deliberada, mas sim condicionada: vemos cada vez mais pessoas a recorrer a PCD's devido a queixas músculo-esqueléticas (essencialmente em ginásio e mais pontualmente em clínicas privadas), assim como uma fatia crescente de atletas/pessoas fisicamente ativas a fazer o mesmo. Esta procura é grande, principalmente dadas as condicionates, que vão desde a falta de apoios monetários ao trabalho de PCD's, ao facto de não serem reconhecidos legalmente como profissionais de saúde (e portanto não poderem trabalhar em contexto de SNS ou sistema público). Para esta (ainda) preponderância do Fisioterapeuta acresce o facto de atualmente as entidades desportivas já contratarem/alocarem PCD's para realizar porções significativas dos processos de reabilitação desportiva após lesão, mas isto só não ser mais disseminado devido à enorme quantidade de clubes que existem em divisões inferiores e ao seu orçamento limitado, provavelmente levando à consequente incapacidade em fazer esta alocação.
(Neste último contexto, importa mencionar o caricato caso de um atleta que, sendo eu o responsável no clube por fazer os processos de return-to-play, mencionou que eu "não era bem um Fisioterapeuta", era mais um "recuperador físico").
No que diz respeito a condições de saúde sistémicas, como hipertensão, diabetes ou condições oncológicas, não me sinto capaz de opinar, uma vez que os programas e iniciativas, especialmente comunitárias, que existem são residuais, mas a verdade é que existem de facto PCD's envolvidos e responsáveis pela prescrição neste contexto.
Ora, quando filtrei o meu racional inicial de divisão de aptidões profissionais no crivo da realidade, deparei-me então com uma assustadora negligência do Fisioterapeuta quando a população pensa na palavra "exercício". A minha primeira resposta, emocional naturalmente, foi de indignação interna, porque o que se estava a passar era claramente um caso de usurpação de funções(!): nós, Fisioterapeutas, somos profissionais absolutamente indicados para a utilização de um instrumento terapêutico eficaz, de enorme efeito, indicado em muitas condições e contextos de intervenção, e ele estava a ser-nos "roubado" por pessoas que não o deveriam fazer!
Não devia ser assim! Ou será que devia...?
Filosofia de Classe, Domínio do saber e aptidão operacional
Ora, está visto que o Fisioterapeuta poderia perfeitamente, em condições normais (ou anormais, literal e figurativamente), prescrever exercício, mas parece também claro que o seu papel social não passa atualmente por aí.
Ainda que indignado, só havia uma de duas coisas a fazer:
- Mudar isso, restaurando aquele que seria o papel social e função instrumental do Fisioterapeuta, enquanto classe, na prestação de cuidados utilizando esta ferramenta
- Aceitar isso, e lidar com as possíveis consequências, comunitários e laborais, que isso acarreta
No caso 1., em que o objetivo passaria por demonstrar à população o valor da intervenção em Fisioterapia, neste caso através da prescrição de exercício, seria necessário cumprir pelo menos dois requisitos fundamentais: 1) entendemos que de facto este tipo de intervenção é do nosso corpo de funções e 2) estamos factualmente capacitados para intervir neste tipo de condições, com esta ferramenta em concreto. De outra forma, se 1) for cumprido mas 2) não, estaremos a prestar um mau serviço para aquilo que nos propusemos. Inversamente, 2) nunca seria cumprido sem 1) ser, uma vez que o ponto 1) determina o investimento na formação, de base e avançada, determinando assim o quadro de competências.
Quando olhamos então para estas premissas, e olhando aos factos, aquilo que sabemos é que de facto grande parte das oportunidades formativas na área da Fisioterapia não só fogem do exercício, como não demonstram qualidade no suporte científico [7]. Isto vem acrescentar ao problema, relatado de forma ampla (pelo menos pelo feedback a que vou tendo acesso) de que a formação de base na área do exercício é escassa e de pobre qualidade de forma global.
Depois, e sendo tão grave como o ponto anterior, para o qual de resto funciona simultaneamente como causa e consequência desta insuficiência formativa, os Fisioterapeutas negligenciam, principalmente em termos relativos, o papel do exercício na sua prática clínica, considerando-o não uma ferramenta de primeiro recurso, mas como algo que não só não é preciso der utilizado, como podendo definir até o limite das nossas competências profissionais (como é exemplo a enormidade de vezes em que já ouvi, da parte dos pares (!), dizer que porque um Fisioterapeuta privilegia o exercício em detrimento de outras estratégias, comprovadamente menos eficazes, então esse Fisioterapeuta nem é realmente um Fisioterapeuta).
Para além disso, mesmo nos casos em que o exercício é utilizado como foco da reabilitação, se olharmos para o racional de acordo com o qual ele é atualmente prescrito de forma generalizada, a maioria dos efeitos propostos ainda são biomecânicos [8], apesar de sabermos atualmente que estes não são os principais mecanismos de atuação analgésica do exercício [9, 10, 11, 12].
Ora, mas claro que uma coisa é a investigação, onde formular e testar hipóteses é salutar, sendo ela uma parte indispensável da tomada de decisão informada na clínica. Aí, sim, os Fisioterapeutas estando capacitados de uma forma que os PCD's não estão, certamente atuam de forma diferenciada. Certo...?
Infelizmente, não. Quando comparadas ambas as classes profissionais, a verdade é que a diferença no racional de prescrição de exercício entre o Fisioterapeuta e o PCD é residual [13], ou seja, ambos têm tendência a utilizar e prescrever exercício de acordo com modelos biomédicos es estruturais que estão obsoletos. Isto faz-me lembrar uma frase do comediante Louis CK, que me parece apropriada.
Mas se calhar... se alguém que chega ao país sem conhecimentos, sem falar a língua, e sem habilitações formais, te rouba o emprego... Então há-de ser "um bocadinho" responsabilidade tua.
Louis CK, a propósito das queixas dos norte-americanos de que a imigração ilegal a
partir do México era o problema do desemprego interno porque rouba trabalho às populações locais
Ou seja, como podemos nós contestar a utilização de exercício em contexto de reabilitação por parte dos PCD's, se a verdade é que somos tão maus como eles a prescrevê-lo? Isto é grave uma vez que o ónus está do nosso lado, devido à formação de base que (dizemos que) temos, (supostamente) capacitando-nos a nós como os profissionais responsáveis.
Aparentemente, não é o caso.
Isto poderia ser mudado se houve melhor formação... Mas, dados os pontos anteriores, é virtualmente impossível.
Ora, a bem da verdade e olhando para a imagem anterior, a hipótese 1. parece ter de ser descartada.
Por este motivo, sobra a hipótese 2.. Esta parte do raciocínio é muito importante, porque temos de nos recordar que o nosso papel enquanto Fisioterapeutas é a prestação dos melhores cuidados de saúde à população. Não os promovendo operacionalizando, então o mínimo que podemos/devemos fazer é não obstruir a que eles sejam prestados por profissionais que possam demonstrar valor (o que é igualmente importante neste ponto é que sejamos intransigentes no que diz respeito à criação de profissões que se propõem a intervir em condições que seriam "nossas", mas que vêm fazer tão mal ou pior que nós. enquanto classe).
O propósito desta reflexão não era então o de "o que fazer?" nesta situação 2. (porque o que gostaria mesmo é que não chegássemos a ela), mas parece-me que chegou a altura de reconhecermos que pode de facto ser necessário incluir profissionais que possam então auxiliar na resolução do problema: dados os benefícios já comprovados do exercício, e factos como os de as condições músculo-esqueléticas (e mesmo outras que beneficiariam dele e nas quais o Fisioterapeuta pode intervir através da sua prescrição) apresentarem atualmente um peso tão grande na qualidade de vida [14], com uma estimativa de 1 em cada 3 pessoas virem a necessitar de reabilitação nalgum ponto da sua vida [15], o que deve ser feito? Incluir mais formação sobre saúde na licenciatura dos PCD's? Inclui-los nas listas de possíveis formandos na formação avançada na área da reabilitação? Se assim for, com novas soluções virão novos problemas e o Fisioterapeuta deve continuar alerta e a tentar ser parte da resolução. Mas isso daria para toda uma nova análise
Limitações da análise
Reconheço lacunas que possam ser importantes na realização deste texto: é um tema realmente complexo e com muitas nuances, e que envolve a interação com uma profissão que não conheço a fundo (a dos Profissionais das Ciências do Desporto). Admito que não tive a oportunidade de conversar a fundo com pensadores da profissão, e não consultei documentos estruturantes da profissão ou que abordem o seu papel na reabilitação ou a sua relação com outros profissionais, nomeadamente no que concerne à prescrição de exercício. Este blindspot de não ter acesso a uma segunda opinião ou a factos alternativos que não conheço constitui uma limitação grande da minha análise, que como sempre coloco a escrutínio.
Para além disso, são assuntos que envolvem pesadas questões legislativas, cujas repercussões também não domino.
Por fim, a ausência de dados de suporte a muitas questões (número real de Fisioterapeutas/PCD's a participar em reabilitação, conhecimento real sobre a prescrição na realidade portuguesa, horizonte do estado da formação básica/avançada em Portugal) impossibilitam análises mais sérias que, por isso, tive de deixar ao abrigo do achismo.
Disclaimer final
Para terminar antes de concluir, isto não é uma ode à enorme (ou sequer superior) conhecimento ou know-how dos PCD's.
O objetivo desta reflexão é discutir a forma como os Fisioterapeutas olham para o exercício e, através deste brainstorming, que possamos de uma vez por todas reconhecer a nossa real importância, e concretizar o grande potencial valor que estamos a desperdiçar enquanto nos focarmos em discussões sobre intervenções, modelos de prestação de cuidados, ou racionais que não só não aportam valor, como são contraproducentes, em vez de sermos parte ativa na reflexão sobre o que é de facto possível fazer para garantir uma população mais saudável e com maiores e melhores índices de participação e longevidade.
É aos Fisioterapeutas que apelo, e aos quais peço que participem nesta ação de reflexão.
Conclusão
Como referi, inicialmente tinha uma perspetiva muito ideológica sobre o assunto (o exercício, especialmente em condições de saúde que exijam reabilitação "é nosso"). Contudo, e devido à realidade atual e aos argumentos anteriores, esta perspetiva não é a que tenho atualmente, sendo esta muito mais pragmática.
Não suporto a ideia de que porque alguém "sabe" fazê-lo, então está habilitado a fazê-lo; o caráter de importância e a respetiva necessidade regulatória da atividade profissional implica que haja balizas bem definidas de atividade laboral pelos diferentes profissionais - de outra forma, as consequências poderiam ir desde qualquer pessoa que lesse um livro, ou que trabalhasse há muito tempo, pudesse exercer uma profissão, até ao facto de as entidades reguladoras não poderem exercer a sua atividade uma vez que pode sempre ser argumentado que a respetiva atividade não se enquadra nos trâmites em discussão.
Contudo, há lacunas importantes que neste momento não estão a ser supridas pelos atuais que o deveriam fazer - e, assim sendo, alguém terá de o fazer. Desta forma, a atitude mais sensata provavelmente passará por parar de criar barreiras à inclusão de novos profissionais, mas sim adotar uma atitude mais progressista com tudo o que isso implica em termos de formação de base ou avançada, e regulamentação.
Como penso que possa (ter de) funcionar um novo modelo de competências entre os dois profissionais no que toca à prescrição de exercício (Figura 3)
Resta agora, enquanto classe, em conjunto com outras classes, e numa perspetiva de ganhos em saúde na população, pensar no que queremos para a nossa profissão e para os cuidados de saúde... E se somos redundantes com outras profissões, ou pior, inúteis.
Bibliografia
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