As Mulheres na Medicina Desportiva
Gostava de começar este texto com um disclosure: ele não serve para virtue signaling. Sou um profundo admirador, e contribuo socialmente tanto quanto posso, para a óbvia e necessária, em todos os domínios, igualdade de género. Contudo, é-me absolutamente irrelevante a interpretação e/ou extrapolação para além daquela que é, rigorosamente, a minha mensagem: as mulheres devem ser suportadas, encorajadas e integradas, tanto quanto possível, no âmbito de atuação desportivo se essa for a sua vontade. Por outro lado, em momento nenhum devem ser integradas sem demonstrarem competência ou de forma a cumprir critérios baseados puramente em determinantes que nada têm a ver com aquilo com o qual poderão contribuir. Este texto tem então os seguintes propósitos 1) ilustrar a necessidade, mais do que ética, de incluir mulheres em contexto de atuação desportiva; 2) como não o fazer; 3) o porquê de isto atualmente não acontecer (e de as perspetivas, ainda que melhores que antes, continuarem a ser muito pouco animadoras), e umas parcas tentativas de solução para um problema complexo.
Porque queremos as mulheres na roda de elite (e não só) da Medicina Desportiva?
Como sugeri antes, este texto nada importa para a opinião que tenho ou deixo de ter sobre e por parte das mulheres (no desporto, ou não). Esta reflexão serve dois propósitos práticos absolutamente claros:
- A possibilidade de acesso universal a cargos e posições laborais que constitui um dos direitos fundamentais da Carta Universal dos Direitos Humanos.
- A claríssima incapacidade atual da Medicina Desportiva de corresponder aos problemas que se lhe apresentam.
O ponto 1) é auto-justificativo e merece pouca discussão - qualquer pessoa que a proponha sob o risco de desrespeitar estas bases não a terá, uma vez que os direitos equitativos e universais têm de ser um dos axiomas básicos e inegociáveis da forma como vivemos.
Gostava só de acrescentar, neste ponto e numa nota pessoal, que os argumentos comuns de "quanto mais não seja, luto por direitos iguais porque tenho uma filha, uma mãe, uma irmã que também merecem respeito" ou "luto pelos direitos das Mulheres porque há estas (indicar quais) mulheres de que gosto muito", é um deturpar da discussão. O Dia da Mulher (que serviu de motivação para este texto) não é sobre mim/nós (seja "mim/nós" quem for). É sobre ela/elas e sobre a capacitação e empoderamento para poderem expressar a sua vontade, gostos e preferências, sejam laborais ou quaisquer outros, sem reservas - não só para celebrar aquelas de quem gostamos ou que fazem o que nós gostamos ou achamos bem, mas principalmente para celebrar a possibilidade de que de facto qualquer mulher pode escolher coisas que não vão de encontro à forma como eu vejo ou gosto do mundo... Porque não se trata de mim, mas dela.
No que diz respeito ao ponto 2), é um ponto que me parece óbvio, mas que só aparece quando pensamos um pouco mais a fundo na questão.
Atualmente, a Medicina Desportiva continua com problemas (ou circunstâncias) que não parecemos estar a conseguir resolver (ou melhorar); isto vai desde a nossa aparente incapacidade em prevenir lesões até à ausência de diferença significativa no tempo de retorno à competição após lesão. passando por questões mais conceptuais (e não menos importantes) como negligenciar a vertente comunicacional ou empática com os atletas e equipas técnicas, implementar um espirito crítico e utilizar a ciência nas tomadas de decisão,
Ora, o argumento é simples, e tem as seguintes premissas:
Algumas das mulheres (haverá certamente mais) cujo trabalho tem sido promotor de melhores práticas na Medicina Desportiva e cuja contribuição, seja ela prática ou no âmbito científico, admiro.
Para além disso, e não as tendo mencionado por respeito à sua privacidade, é sempre bom relembrar aquelas com quem trabalho diariamente e que, com mais ou menos experiência ou know-how, mas com uma vontade infindável de mostrar valor e de se fazer valer num "mundo de homens", lutam e provam todos os dias que são merecedoras da confiança que lhes é depositada pelas equipas técnicas, direções, atletas... e por mim!
"Mesmo que, por qualquer motivo e de forma imbecil, alguém for a favor de qualquer forma de descriminação, até do ponto de vista prático essa pessoa está errada - se queremos ter uma sociedade que funcione de forma mais efetiva, não faz qualquer sentido vedar o acesso de pessoas que podem contribuir para esse efeito, sob qualquer pretexto que não a sua produtividade na tarefa".
Adaptado de Jordan Peterson
Para além disso, a presença de mulheres em contexto desportivo, em última instância, serve dois propósitos, um direto e outro indireto: o direto é a expertise óbvia que aportam ao contexto quando demonstram competência; o indireto é o benefício não negligenciável da representatividade e do impacto que tem para um determinado grupo de pessoas poderem testemunhar a forma como alguém com quem partilham alguma característica marcante desenvolve uma atividade, podendo servir de motivador para que se lute por alcançar determinado objetivo - ninguém tenta ser alguma coisa que lhe parece à partida inatingível. Este é um bom segway para o próximo ponto, que é qual o peso que devemos colocar na representatividade em detrimento de outras circunstâncias, e como o otimizar (ou neste caso, como não deturpar uma luta não só válida, como necessária, ao optar por medidas - inalcançáveis - e que provavelmente acabariam até por ter resultados desastrosos).
Resumindo:
Queremos as mulheres na elite (e não só) da Medicina Desportiva por um motivo muito simples - porque precisamos delas.
O que não é promover a participação das Mulheres na Medicina Desportiva?
Por tudo o discutido anteriormente, proponho que paremos de olhar para a inclusão das mulheres na Medicina Desportiva (só) como se isso fosse uma "permissão" para elas poderem trabalhar onde querem, mas mais como uma forma óbvia de melhoria do contexto da Medicina Desportiva. A integração das mulheres, em si, não é o fim (relembro que não pode ser o fim porque é uma condição inegociável a priori) - é o meio, para se atingir o fim. Assim, a questão passa a colocar-se agora em "como atingir a otimização do conhecimento e operacionalização da Medicina Desportiva?".
Uma das propostas mais comummentes ouvidas no âmbito da igualdade de género é a colocação de cotas para ocupação por género. Esta intervenção, inclusivamente já colocada em prática na investigação sobre Medicina Desportiva, é justificada através da necessidade de representatividade. Apesar de não ser conhecedor das Ciências Sociais, ela não me parece ser plausivelmente produtiva, por algumas razões que irei expôr a seguir e que seguem o raciocínio extrapolado de dados empíricos que nos indicam que, dentro dos alunos de Fisioterapia que tinham a intenção de seguir carreira na área desportiva, uma larga maioria deles seriam homens (Ohman, 2001 e 2002), o que não parece ter grande influência do contexto, uma vez que foram explorados contextos sociais de Suécia e Canadá (podemos discutir se são de facto muito diferentes, mas sê-lo-ão à partida o suficiente para que este grupo de investigação os explorasse a ambos). Naturalmente, também poderemos dizer que esta larga disparidade provém ela mesmo de uma ausência de representatividade (e de uma série de fatores que levam as mulheres a descartar a presença neste contexto de trabalho) mas, até prova em contrário, este argumento é wishfull thinking e só com mais dados poderíamos concluir (ou rejeitar liminarmente) essa hipótese.
Assim, e com este enquadramento de base, diria que a proposta (atual) das cotas é má pelos seguintes motivos:
- A criação de cotas (principalmente quando de 50/50) implica que uma parte significativa de homens possa ficar sem lugar independentemente da sua competência ser maior que a de várias mulheres colocadas (e, mais uma vez, isto não se trata de coitadinhos dos homens, mas sim de coitadinha da Medicina Desportiva).
- A criação de cotas (independentemente dos valores) pode impôr uma igualdade artificial das circunstâncias laborais, que é a expressão de poder ter de haver mulheres que não podem fazer o seu trabalho de sonho (nos quais também teria de passar a haver cotas), para terem de passar a trabalhar no desporto (no qual, havendo cotas a cumprir, foi o local onde lhes sobrou lugar).
- A ideia de "foste contratada para este lugar não porque és a mais competente, mas porque tinha de ser uma mulher" não me parece propriamente empoderadora.
Ainda assim, compreendo que o estabelecimento parcial de cotas (que não igualitárias, mas eventualmente mínimas) possa ser uma solução, principalmente muito útil se considerada dentro de um quadro temporal que vá até médio-prazo, para promover a participação de mais mulheres e, com isso, permitir a que os mais jovens o encarem como um processo normal, possível e desejável.
Os problemas, para as mulheres, da Medicina Desportiva
No segmento anterior discuti o porquê de as cotas serem possivelmente uma má ideia, possivelmente até contraproducentes quer do ponto de vista da efetividade social da medida, quer do ponto de vista dos resultados no mundo real da prática na Medicina Desportiva... mas antes disso, disse também que estas medidas seriam, nelas mesmas, impossíveis de levar a cabo. Este é apenas um dos problemas com os quais me fui deparando no Desporto, sendo que uma série deles constituem barreiras contextuais que, sendo interdependentes, implicam que se torne difícil desenrolar o novelo de lá e aumentar a permeabilidade do contexto ao trabalho desenvolvido por mulheres.
Numa nota de honestidade intelectual, acredito que a situação atual seja melhor do que era antes, e que a opinião aqui expressa segue uma linha de opinião formada pelo meu background e experiências pessoais (totalmente associados ao contexto desportivo), uma vez que não existe grande literatura sobre o assunto.
Para além disso, relembrar que de facto não sou mulher. Contudo, de forma nenhuma (e como já tentei explicar) o ingresso de mulheres na Medicina Desportiva ultrapassa, em todas as dimensões, a ideia de que têm de ser as mulheres sozinhas a lutar pelo efeito. Também não acho que não ser mulher minimize os meus argumentos, uma vez que a lógica argumentativa não depende de quem a propõe - por outro lado, o posicionamento de quem o propõe é importante, e é aqui que estou recetivo: na partilha de experiências, distintas da minhas, e que possam ser ilustrativas da transversalidade do contexto, algo que a minha experiência pessoal pode não ilustrar. Estas considerações, mudando as circunstâncias, podem alterar a conclusão.
Podia ser interessante ter alguma literatura qualitativa sobre o assunto.
Também para mudar o paradigma, e ainda que seja só semântica, acho que seria boa ideia parar de dizer que "as mulheres têm alguns problemas caso queiram ingressar na Medicina Desportiva", e passar a dizer que claramente é "a Medicina Desportiva que tem alguns problema a resolver se quiser receber a contribuição das mulheres".
Neste exemplo em concreto, a verdade é que o principal problema da Medicina Desportiva, muito mais do que na sua componente intelectual através da investigação (onde pode, ainda assim, haver trabalho a fazer), está na sua componente prática - num meio onde o interveniente comum tem um grau de educação e literacia médio-baixo, com crenças e esterótipos muito enraizados e difíceis de descontruir.
É importante também ressalvar que provavelmente isto tem uma influência grande de fatores como o nível competitivo, mas também qual o desporto e o sexo dos atletas (será de esperar que, em média, os atletas do rugby sejam mais recetivos que os do futebol, e que seja mais fácil para uma mulher trabalhar com um plantel feminino do que com um plantel masculino).
Conforme podemos testemunhar se considerarmos esta resposta precisa, existem dificuldades de vários níveis associados à prática laboral de mulheres no Desporto. O problema disto é que criar as condições para que mais mulheres possam trabalhar no desporto exige mais do que medidas mandatórias com efeito imediato; requer provavelmente uma intervenção complexa e em múltiplos âmbitos simultâneos, com a perspetiva de uma mudança a longo-prazo.
Em jeito de exemplo, se as cotas entrassem em vigor amanhã, o que aconteceria seria de facto muito mais mulheres a trabalhar no desporto, mas muitas delas provavelmente infelizes, pela impossibilidade de encarar a sua contribuição como positiva (ou pelo menos ao nível dos restantes elementos) ou pela inaptidão de diretores e jogadores de lidar de forma profissional com uma mulher num meio onde elas escasseiam. Todas estas circunstâncias, sendo modificáveis, exigem uma intervenção de outros níveis hierárquicos (como por exemplo a direção), onde muitas vezes essas mesmas crenças estão tão ou mais presentes que nos restantes.
E soluções?
Esta é a parte na qual, depois de explicar o quão complexo é o problema, ofereço uma resposta unidimensional que resolverá o problema na totalidade.
Naturalmente, não tenho solução, muito menos única.
Creio que intervenções como o estabelecimento (não-igualitário) de cotas de participação por género (o que pode levantar outras questões... que não irei discutir aqui), o apoio e promoção por parte das entidades reguladoras e financiadoras para a contratação de Fisioterapeutas mulheres (como por exemplo o suporte salarial de uma parte do staff em função de uma certa cota), a educação por parte dos agentes desportivos e a sua responsabilização por atitudes impróprias (seja com mulheres ou de forma social no geral) e a criação de um ambiente amigável à integração das mulheres (em jeito de sátira, não é pintar os balneários de cor-de-rosa ou proibir palavrões ou piadas sexuais - é garantir que há decência por se tratar de alguém do sexo oposto, respeitar o seu direito à privacidade ou envolvê-la nos processos de tomada de decisão... Ou seja, o mesmo que se faria a QUALQUER pessoa).