A Multiplicidade da Fisioterapia
No mundo polarizado em que vivemos, a Fisioterapia também sofre. As consequências disto são os antagonismos entre aqueles que utilizam clickbaits de promessas milagrosas e aqueles que dizem que tudo deve ser explicado ao detalhe, as divergências entre quem diz que nada existe na Fisioterapia para além da evidência científica e o exercício e aqueles que dizem que ela na realidade não importa e que as estratégias passivas que utilizam em clínica aportam imenso valor, entre outras incapacidades de consenso ou compreensão mútua, que culminam na dificuldade de aceitar e subscrever uma identidade profissional comum.
Mas afinal de contas, e seja lá que identidade profissional for essa, será que esta polarização de perspetivas implica necessariamente que um dos lados da discussão esteja certo?
A Fisioterapia é possivelmente a profissão (de saúde) mais versátil de todas. Desde a extensão do espectro de saúde em que pode atuar, até ao local onde pode exercer a sua atividade profissional, passando pelo tipo de condições ou as diversas etapas dos respetivos processos nos quais pode participar. Negligenciando questões relacionadas com a identidade profissional (que deveria estar bem estabelecida - e para isso existe um perfil de competências), a verdade é que se torna impossível que todos os Fisioterapeutas atuem da mesma forma. A este facto, que irei definir como as naturais diferenças que constituem o exercício profissional, particularmente na operacionalização das estratégias de intervenção, dos diferentes Fisioterapeutas, chamarei a Multiplicidade da Fisioterapia.
Com esta conceptualização, surgem diversas questões: isto é mesmo inevitável? E se for, é uma coisa boa ou má? Enquanto profissionais, deve ser mais aquilo que nos aproxima, ou que nos afasta?
O que faz de nós iguais é que somos todos únicos
Uma frase comum quando conversamos com pares é ouvir que "cada caso é um caso". Esta frase pode ter várias conotações, e irei começar pelas menos explícitas.
Antes de Fisioterapeutas, todos somos pessoas. E enquanto pessoas, também nós estamos sujeitos aos nossos viéses, ao nosso histórico, às nossas crenças, e às nossas preferências. Cada um de nós já foi, nalguma instância, consumidor de cuidados de saúde, pelo que tem certas expectativas de como estes devem ser prestados. Em termos de personalidade dentro da profissão cada um de nós já lidou com casos diferentes, ou com casos iguais mas com necessidades e/ou progressões diferentes. Estas diferentes personalidades, associadas à diversidade profissional que mencionei antes, faz com que seja impensável que todos nós fôssemos prestar cuidados às pessoas que nos procuram ou precisam de nós de forma universal e imutável. Isto é uma característica que está particularmente presente em condições ou circunstância em que as características psicossociais assumem um papel preponderante - ou seja, igual ao da dimensão biológica. Não é expectável que os cirurgiões cardíacos, principalmente no ato operatório tenham uma divergência de atuação que cubra todo o espectro de probabilidades - com um desvio padrão relativamente curto, os procedimentos estarão bem executados, ou menos bem executados. Portanto, o "cada caso é um caso" começa por ser verdade na medida em que, dadas as necessidades na prestação de cuidados e a características das condições em que podemos aportar valor, as características psicossociais - tanto ou mais que as técnicas - assumem um papel fundamental na forma como operacionalizamos a nossa intervenção - sempre de forma diferente.
Depois, claro que "cada caso é um caso" no que diz respeito aos pacientes. Isto é uma não - questão e uma verdade que normalmente não precisa de ser expressa. Quando o é... É mau sinal.
A sacrossanta evidência científica
Assim, claro que "cada caso é um caso". Quando ouvirem isto, é mau sinal - há uma probabilidade significativa de estarem na presença de alguém que não prestou os melhores cuidados ao seu paciente. Normalmente este argumento vem seguido de uma discussão (maior parte das vezes acalorada) de como os cuidados prestados não obedeceram às melhores recomendações em que não são a primeira linha de intervenção nas respetivas condições. O argumento seguinte é sempre o mesmo: "ah, isso da sacrossanta evidência científica..." ou variantes. Este termo, popularizado no panorama nacional por Ricardo Araújo Pereira, é um termo utilizado quando alguém recorre ao sarcasmo, dizendo que determinado assunto não pode ser criticado através da sua ridicularização por colocá-lo num pedestal. Naturalmente, isto é uma falácia.
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A bem da verdade, e em jeito de curiosidade, recorrentemente a evidência científica de melhor qualidade a que vamos tendo acesso não vem castrar a nossa atuação - pelo contrário, vem dar-nos liberdade. Isto acontece na terapia manual e na (ausência de) necessidade de especificidade, no prognóstico e respetiva intervenção em casos de lombalgia aguda, no exercício e na dor, ou nas estratégias de modulação sintomática no geral. Se mesmo com uma perspetiva de atuação cada vez mais alargada proporcionada por aquelas que são as estratégias suportadas pela evidência científica (ou pela plausibilidade biológica ou utilidade num raciocínio clínico centrado no utente), nem assim as estratégias de intervenção parecem ser adequadas... Algo de muito errado deve estar a acontecer.
Naturalmente, o caráter científico da nossa profissão certifica só pretende garantir que não nos tornamos obsoletos, com prática assente na autoridade, popularidade ou antiguidade, mas sim que a nossa valorização provém da prestação de cuidados que tragam mais-valias à vida das pessoas. A existência de Guidelines ou Normas de Orientação Clínica, que tentam simplificar e sintetizar corpos de evidência muito complexos e extensos, não pretende tornar a prática de todos os Fisioterapeutas igual, mas antes providenciar informação facilmente digerivel que depois cada Fisioterapeuta deverá operacionalizar, como proposto antes, dependendo da sua própria experiência e preferência, assim como das dos seus utentes.
"A investigação não ajuda os pacientes. É a sua integração competente num raciocínio clínico por parte do Fisioterapeuta que ajuda as pessoas."
Lars Avemarie
Assim, é esta incompreensão do método científico e da forma como ele deve ser integrado na Fisioterapia, a par do facto de que muitas das estratégias de intervenção que estes Fisioterapeutas usam têm um caráter dogmático e/ou custaram muito tempo e/ou muito dinheiro. e portanto têm uma dimensão identitária associado ao ego de quem as providencia, que torna muito fácil confundir argumentos de ordem racional com ataques pessoais.
O mundo é bué cenas
Esta noção de "ou estás comigo ou contra mim" quando a argumentação é tida na dimensão racional, em que quem discute a utilização de uma técnica ou estratégia não discute 1) a competência de quem a fez ou 2) sequer o resultado final, parte também de um premissa errada - a evidência científica é o que mais importa. Pois bem, não é, Há muitas coisas que importam tanto... Ou mais.
O objetivo do Fisioterapeuta é prestar os melhores cuidados possíveis. Isso sim, é o que mais importante. E por muito que me custe dizer, algumas vezes - para não dizer muitas - operacionalizar a melhor evidência científica no âmbito da intervenção não é compatível com a intervenção possível.
Quando com métodos qualitativos (ou outros) se procura saber por exemplo que barreiras existem na prestação de cuidados de saúde, isto é muito útil por vários motivos, sendo que um deles é por exemplo compreender em que medida num determinado segmento da população as melhores estratégias disponíveis têm de ser ajustadas face aos recursos disponíveis ou contexto. Esta ordem de evidência, que não é aquela que estamos habituados a discutir, traz informações muito pertinentes para a prática e nem por isso ela vem dizer que a intervenção está certa ou não. Isto serve apenas para ilustrar que em diversas situações a melhor evidência científica aponta numa direção, mas o óptimo é inimigo do bom, e no sentido de prestar bons cuidados à pessoa temos de abrir mão de alguma parte daquilo que iríamos oferecer inicialmente - os casos mais comuns em que isto pode ser justificado é a prestação de cuidados em MFR, ou em casos em que o paciente chega com crenças muito enraizadas, mas que podem ser contraproducentes para a resolução da sua condição.
Para além disso, é (ou devia ser...) fácil decidir o caminho terapêutico quando existe evidência científica de boa qualidade disponível. Mas a bem da verdade, e na Fisioterapia isto é particularmente notório, nem sempre ela existe - aliás, em poucas circunstâncias ela existe (basta ver a quantidade de consensos e guidelines que são feitos em bases de evidência científica que os próprios autores reconhecem ser débil). Nestes casos, sobressai ainda mais o papel do Fisioterapeuta enquanto agente que irá propôr um novo e arrojado caminho, tendo por base apenas a sua experiência e sensibilidade clínicas, que por muito informadas e bem intencionadas que sejam, são sempre mais propensas a viéses.
A identidade comum e o inegociável
Ora, pesados estes argumentos, pode ser (e é-o, muitas vezes e infelizmente) demasiado fácil justificar tudo e mais um par de botas como sendo "prática baseada na evidência". Portanto é fundamental esclarecer, relembrando, que isso não é o fim, mas sim o meio; e que sendo o meio, deve estar associado a outras questões identitárias, que devem pautar (ainda) mais a nossa atuação clínicas - e que dela podem beneficiar - do que a seleção de estratégias de intervenção que tenham evidência científica de suporte muito robusta.
Questões como o consentimento informado real (e não só a assunatura de um papel), a decisão partilhada, a prática centrada no utente, uma conduta etica e deontologicamente correta, quer com os utentes, quer com os pares ou outros elementos da equipa multidisciplinar, idealmente pautada pela não-maleficiência e respeito pela autonomia assim como fazendo cumprir outros princípios sociais, são características inegociáveis daquilo que deve ser o nosso quotidiano - mesmo que depois possamos divergir no tipo de estratégias que utilizamos.
O resultado líquido
Gostava de ressalvar que isto não pode ser negociável em qualquer instância. Qualquer Fisioterapeuta que tente negociar, ou simplesmente negligencie a existência, destas questões não só não deve ver alimentada qualquer discussão que daí advenha, como qual ou quais as intervenções mais indicadas para determinado caso, como deve ser claramente chamado à razão. Questões como exploração das debilidades associadas à condição ou da iliteracia do paciente, intervenções que claramente atentam ao seu bem-estar, ou uma prática centrada no Fisioterapeuta (e nas suas estratégias preferidas e "adaptadas ao paciente" mas que depois são iguais para todos) são comuns e devem ser desencorajadas e revistas.
Assim, ponderando tudo, desde as lutas internas, o escrutínio contínuo, a paciência com profissionais incapazes, a usurpação de funções, o desajuste da formação base e maior desajuste ainda da formação contínua, a argumentação repetitiva ou outros fenómenos que tornam todo este processo penoso, a verdade é que a soma de todos estes acontecimentos, e que constituirão a universalização da forma, mas a garantia da diversidade do conteúdo daquilo que é entregue pelo Fisioterapeuta, vai promover duas consequências, ambas altamente benéficas:
- Se a Fisioterapia, através dos Fisioterapeutas, conseguir construir esta componente fundamental e estruturante da profissão de forma transversal, será muito mais reconhecida pelos pares e pela sociedade, uma vez que será mais fácil saber que tipo de atuação (e que extensão de diferenças) será aceitável, distinguindo os profissionais que são recomendáveis daqueles que não são, e construindo uma imagem social que nos permitirá valorizar-nos - e depois partir para novos desafios na procura de melhores condições, alargamento do scope de atuação, entre outras questões que, sem outros assuntos prévios claramente resolvidos, são impossíveis de abordar.
- Nenhum Fisioterapeuta resolve todos os casos com que teve de trabalhar. Mesmo que um Fisioterapeuta tome, de acordo com as melhores informações disponíveis, boas decisões 100% das vezes (ver "resultadismo" aqui https://www.facebook.com/photo/?fbid=1348949931972906&set=pb.100063538869677.-2207520000), é impossível que tenha uma taxa de sucesso correspondente a 100% - e nisto, é óptimo que possa haver profissionais que trabalham de forma distinta.
Numa profissão que lida com condições em que os fatores biopsicossociais são tão importantes, muitas vezes poderá acontecer que o simples facto de um Fisioterapeuta ter uma forma de estar e atuar diferente de outro, facilite o processo de adesão e assim aumente a probabilidade de resolução de condição da pessoa.
Assim, em última instância, a Multiplicidade na Fisioterapia não só é inevitável, como felizmente parece ser altamente recomendável.
Conclusão
Por vários motivos, esta discussão é importante:
- Há recém-licenciados a sair da faculdade todos os anos. Num mundo tão competitivo, onde toda a gente quer ganhar o seu espaço, é natural que tentem mimetizar certos exemplos que têm como sendo de sucesso. Isto não só é improvável que lhes traga sucesso, como é um desaproveitar dos seus talentos, e consequentemente daquilo que podiam oferecer à Fisioterapia e, através dela à sociedade e a quem os procura.
- A Ordem está prestes a instalar-se. Esta não deve nem exercer um papel autorítário no que concerne à atuação dos Fisioterapeutas, mas também não pode apenas fazer corpo presente - é fundamental que defina a extensão da sua influência, e em que é que se pretende fazer sentir. E o estabelecimento de balizas indispensáveis de atuação, no qual está o respeito pela individualidade (calculada e respeitada pela sensibilidade associada à interpretação de informações providenciadas pela evidência científica), parece-me um bom sítio para começar.
- Haver Fisioterapeutas que pensam e atuam de forma diferente uns dos outros é o primeiro, e indispensável, passo para que a Fisioterapia providencie o valor que pode providenciar. É fundamental que os Fisioterapeutas entendam, por um lado, que serem criticados não constitui em si um ataque pessoal e muito menos deixa implícito a ideia de que náo podem atuar de forma diferente de quem critica, e por outro que a crítica gratuita em função de náo fazerem exatamente o que eu fiz não só não faz favor à profissão ou a quem pretendemos que mude de conduta, como pode ser contrproducente para a nossa legitimidade e contribuição.
Para terminar... Uma frase bonita.