A "Lei de Wolff", mecanotransdução e as implicações na prática clínica
Um dos mecanismos de propagação de Pseudo-ciência é pegar em jargão técnico e conceitos científicos, travesti-los, e dar-lhes um ar de sobranceria para fundamentar intervenções com justificações aos quais esses conceitos não se propõem.
Não foi uma nem duas vezes que ouvi a famosa Lei de Wolff, e o respetivo mecanismo de mecanotransdução, serem usados como justificação para intervenções em Fisioterapia - e/ou outras - com circunstâncias no mínimo anedóticas.
De forma a esclarecer o que esperar - e não esperar - da Lei de Wolff (e de outras, essas sim aquelas que deviam ser citadas) e da mecanotransdução, vamos olhar com calma e estabelecer algumas considerações sobre elas, com referências para os Fisioterapeutas se acautelarem quando as verem ser usadas para citar intervenções. Como em tudo, espírito crítico não é um luxo a desprezar.
Lei de Wolff
A Lei de Wolff foi descrita por Julius Wolff em 1892, e pretendia descrever a forma como o osso se adapta à carga que lhe é imposta. Apesar de haver algumas críticas fundamentadas ao modelo matemático que ele propôs para explicar esta hipótese, a verdade é que, invariavelmente, mesmo os críticos do modelo utilizado concordam que o conceito geral de adaptação do tecido ósseo às cargas que lhe são impostas é um conceito unânimemente aceite na comunidade científica e cujo princípio é praticamente incontestado [1]. Este modelo, com algumas adendas já na altura por Wilhelm Roux foi recentemente otimizado de acordo com os novos avanços de conhecimento por Harold Frost [2], surgindo daí o conceito de "mecanostato", que nos será útil mais à frente [3]. O próprio Frost sugere novos desenvolvimentos na forma como este conhecimento poderá o desenvolvimento de investigação e aplicabilidade prático no estudo do sistema esquelético, e essas propostas já começa a surgir [4]
De forma a acabar com a confusão dos modelos conceptuais e matemáticos, alguns autores passaram a referir-se a esta teoria de adaptação do osso como "adaptação óssea funcional". Esta tem dois pressupostos base:
- Os organismos vivem têm a capacidade de se adaptar às condições em que vivem.
- As células ósseas conseguem responder à imposição de stress mecânico local
O que este modelo inicialmente proposto por Wolff procura conceptualizar é que um osso irá adaptar-se á quantidade de stress que irá receber; caso receba mais stress do que aquele para o qual está acomodado, irá adaptar-se no sentido de levar a maior deposição de tecido ósseo (considerando que está a desenvolver uma hipertrofia [3]), que irá por sua vez fazer com que o novo nível de pressão imposto seja considerado relativamente como "ótimo". Se, por outro lado, os níveis de stress imposto à estrutura óssea passam a ser inferiores aos prévios, parte do tecido ósseo é reabsorvido [1].
Em condições normais de homeostasia, este processo é constante uma vez que o nosso organismo é um sistema que, apesar de procurar continuamente o equilíbrio, é dinâmico e está em constante mudança e adaptação (em parte devido ao tempo de vida de muitos dos seus constituintes ser relativamente curto). A forma como este será regulado depende de vários fatores, desde o osso em questão, até fatores sistémicos como a idade, condição de saúde/doença, estado hormonal e background genético, e ainda de acordo com o tipo de stress (a nomenclatura correta em inglês é strain que se pode traduzir grosseiramente para "estiramento") e a respetiva frequência e/ou magnitude de estímulo [1].
Um dos pressupostos fundamentais desta hipótese é a da eficiência. Ou seja, um osso terá apenas a força suficiente para tolerar as cargas voluntárias que lhe são impostas. A isso chamou-se "competência mecânica" e essa é a prova inequívoca, e o resultado final, da saúde óssea [6].
Esta regulação é feita por vários intervenientes, de entre os quais se destacam os osteoblastos, responsáveis pela síntese de tecido ósseo, e os osteoclastos, responsáveis pela sua degradação.
Ação dos Osteoblastos (série Era uma vez o Corpo Humano)
Ação dos Osteoclastos (série Era uma vez o Corpo Humano)
Lei de Davis
Não era inédito, por esta altura, haver a associação entre osso e
músculo. Frost, após verificar que muitos dos constituintes não-mecânicos que
influenciavam o crescimento ósseo influenciavam também o crescimento muscular
(fatores de crescimento, androgéneos, informação genética, cálcio, vitamina D e
exercício), começou a hipotetizar que talvez o mesmo mecanismo que levaria à
adaptação óssea, pudesse levar também à adaptação dos tecidos moles [7] (hipótese que já
havia levantado como uma das hipóteses para o futuro da investigação da
hipótese do mecanostato).
Contudo, também aqui Frost reconhece e aproveita o trabalho prévio realizado por outro investigador. Henry Davis, contemporâneo de Wolff e Roux, hipotetizava que a mesma linha de raciocínio seguida por eles seria também aplicável a tecidos moles, hipótese que contrariava, à semelhança do que acontecia na Lei de Wolff, o estado-da-arte da altura era de que os fatores responsáveis pela adaptação dos tecidos moles (ligamentos, fáscia e tendões) eram principalmente fatores não-mecânicos [7].
Se hoje nós já temos noção clara da forma como isto acontece com os músculos por exemplo [8] (apesar de os mecanismos e da sua forma de atuação ainda não ser absolutamente claro), por qualquer motivo temos tendência a esquecer-nos - ainda hoje - de que os restantes tecidos moles também seguem este princípio [9], já com alguma ponderação da literatura que procurou estudar casos mais concretos [10].
Assim sendo, em tecidos moles, os tecidos respondem exatamente da mesma forma, seguindo um racional de crescimento (é importante referir que, de acordo com a teoria proposta, "crescimento" do inglês growth refere-se ao processo pelo qual o tecido se adapta estruturalmente ao longo do tempo, pelo que este pode dizer respeito ao aumento ou diminuição da massa). e remodelação (alterações na microestrutura que levarão a alterações nas propriedades mecânicas), uma vez que os tecidos irão sempre procurar um estado de homeostasia, procurando adequar a sua estrutura e respetivas capacidades à demanda do contexto - mais uma vez, o princípio de eficiência e de otimização energética [9] cuja transferência clínica será fundamental.
Desta forma, e exatamente à semelhança do que acontece nos ossos, as células dos tecidos moles estarão sujeitas a processos de produção, remodelação e degradação de constituintes da matriz extra-celulares. É fundamental, devido à aplicabilidade prática e operacionalização destes pressupostos, realçar algo: este turnover - nome que é dado à troca de matriz pré-existente com a nova - pode ocorrer ao nível celular em minutos, mas demora normalmente dias ou meses para ocorrer ao nível macro, isto é, dos tecidos [9] - exemplos disto são as fibroses ou a atrofias.
Nenhuma destas considerações exclui que as células não tenham propriedade elásticas, isto é, que respondam a deformações do meio - contudo, a resposta ocorre e retorna de imediato ao estado prévio).
Resposta de determinada estrutura a um estímulo de duração curta e com magnitude alta[9]
Este processo ocorre, de forma normal, em tecidos saudáveis [9].
Há contudo uma ressalva... O tecido precisa de tempo de recuperação para
recuperar o seu equilíbrio - aquilo a que se chama de estabilidade
mecanobiológica. Por fim, existe também o conceito de adaptação
mecanobiológica, que explica o facto de, eventualmente, e após incorrer em grandes
alterações, as células e os tecidos por elas constituídos não voltarem
exatamente ao nível basal. Todas estas considerações terão influência clínica
importante.
Resumindo
Simplificando, a Lei de Davis não nos diz mais do que o bom-senso nos indica: uma estrutura vai adaptar-se de forma óptima se a carga que receber for crescente ao longo do tempo, através da gestão entre estímulo, descanso e adaptação, vai entrar em sobrecarga se não recuperar do estímulo antes de receber novo estímulo, e não se vai adaptar se o estímulo que receber for o suficiente para despoletar adaptação. Caso o estímulo stressor se mantenha, a estrutura vai entrar num processo de manutenção dinâmica da homeostasia. Para tudo isto, também como nos diz o bom-senso, é necessário tempo.
Créditos @thesportsphysio
Assim, quando queremos falar da capacidade de tecidos moles se adaptarem à imposição de carga, não devemos citar a Lei de Wolff, mas sim a Lei de Davis.
Mecanotransdução
Tanto a Lei de Wolff como a Lei de Davis resultam do já referido mecanismo de mecanostato. Esta é definida como a conversão de forças biofísicas (cargas mecânicas) em respostas celulares que levam a alterações morfológicas ao nível dos tecidos [11].
De forma a exemplificar, partilho um infográfico prévio, auto-explicativo, realizado a partir de um artigo de Khan e Scott, que abordam como este fenómeno de mecanotransdução pode ser utilizado pelo Fisioterapeuta na sua prática clínica.
Exemplos de adaptação
Tecidos ósseos
Que exemplos existem visíveis existem então deste fenómeno de mecanotransdução?
Neste estudo de caso partilhado por Kharim Khan, um bebé nasceu sem tíbia. Na imagem seguinte podemos ver:
- Raio-x normal de uma criança de dois anos
- Perna esquerda após a cirurgia, com um peróneo no plano axial na perna.
- Follow-up a 3 anos, com o mesmo osso a apresentar uma morfologia condizente com... Uma tíbia.
Noutro exemplo, na imagem ao lado, podemos ver um esqueleto. O indivíduo portador deste esqueleto viveu no Século XIX e era um arqueiro do exército inglês. Apesar do erro de paralaxe, é possível identificar o maior comprimento do membro superior esquerdo em relação ao direito.
Os indivíduos com esta ocupação eram expostos desde muito cedo ao treino com arco (aproximadamente desde os 13 anos). Nesta, é necessário com uma mão puxar o fio e com a outra empurrar o arco. A hipótese é a de que, com a exposição precoce e gradualmente mais exigente dos arcos utilizados (até para eficiência da tarefa), os indivíduos se fossem adaptando de forma a estar otimizados para a tarefa. Isto implicaria a adaptação dos seus tecidos, neste caso visivelmente, dos tecidos ósseos.
Sabemos hoje em dia que corredores de fundo apresentam mais força e densidade óssea na tíbia do que comparados com um grupo de controlo [5] [12] [13] e que estes marcadores ósseos, muitos deles de degradação, não têm uma influência negativa nos atletas e na sua vida diária [14]
Comparação na densidade óssea entre corredores que realizaram também exercício de força, corredores, um grupo de controlo [13]
Fonte do Gráfico: https://www.sci-sport.com/en/articles/osteopenia-and-running-impact-of-resistance-training-171.php
Outro dos exemplos onde esta ausência de mecanotransdução se faz notar e que tem repercussões claras é nos astronautas.
Abaixo fica uma pequena explicação do fenómeno.
Tecidos moles
Os jogadores de ténis apresentam 70% de mais força óssea rotacional nos
ossos do membro dominante do que no contra-lateral [5]. Um caso exemplificativo disso é Rafael Nadal, cujo membro esquerdo parece, mesmo no que diz respeito aos tecidos moles, significativamente mais desenvolvido que o direito.
Ainda que com uma patologia genética de base (que levou a um membro hiperdesenvolvido em relação ao outro), este "desequilíbrio" não implica qualquer clínica ou perda de função - aliás, esta alteração foi capitalizada da melhor forma por Matthias Schlitte que se tornou arm wrestler.
Implicações Clínicas
Intervenção
De forma simples, a ideia a retirar é muito intuitiva: quanto mais carga crónica um tecido receber, mais ele se adapta e melhor preparado ele estará para receber carga. Se deixar de receber essa dose de carga, as adaptações perdem-se.
Estão mais que estudados os benefícios clínicos
[1]
Osso: poucos impactos curtos e fortes vs muitos impactos longos e fracos
Quanta carga para obter alterações na Fáscia?
Lesões SObre-uso e intensidade/frequência Estímulo
Conclusão
"A próxima vez que usarem a mecanotransdução para justificar alterações através de Terapia Manual, digam-lhes para esfregar o bícipite até verem hipertrofia."
Derek Griffin