A Filosofia na Fisioterapia

05-01-2019

É bem discutido, e é um cliché comum, que quanto mais soubermos de várias disciplinas, mais saberemos da nossa. Será que este cliché se aplica também à Filosofia? E se sim, porquê? E como?

Filosofia é uma disciplina que etimiologicamente significa a simpatia ou o agrado pela arte de ter ou obter conhecimento. Esta ganhou visibilidade particularmente na Grécia Antiga, tendo ainda assim alguma influência nos séculos subsequentes, e discutia-se que a sua utilidade era ensinar a viver (e morrer) melhor.

Mas como pode o conhecimento em Filosofia ensinar-nos, ou guiar-nos, a ser melhores fisioterapeutas? Será que se dá esta transferência de competências para a nossa área? E se sim, como? E de quais?


Filosofia - Para quê?

A Fisioterapia é uma disciplina baseada em Evidência Científica. Continuamente, usamo-lo para defender a validade da nossa atuação e esse facto sustenta de sobreforma a nossa utilidade e o nosso corpo de competências. 

A Ciência na qual nos baseamos tem um pressuposto muito simples: dar-nos, com a maior fiabilidade possível, as respostas que queremos e procuramos. Enquanto área que se baseia na Evidência Científica, podemos dizer que temos a Ciência do nosso lado. 

Isto apresenta, contudo e à partida, um viés... Nós temos as respostas, mas para que perguntas?
Se não soubermos que perguntas fazer, e como as fazer, nunca vamos obter as respostas de que precisamos.

Se a Ciência é então responsável por nos dar as respostas... A Filosofia é responsável por nos ensinar a fazer as perguntas.


Filósofos e respetivas linhas de pensamento

De forma a percebermos se, e de que forma, estes pensadores nos poderão ajudar a chegar a algumas conclusões, foram seleccionadas algumas abordagens, doutrinas e ensinamentos que poderão ser transferíveis para a prática, técnica e não-técnica, da Fisioterapia.


Platão

Platão é considerado o pai da Filosofia Moderna Ocidental.  Autor de uma série de obras, é largamente conhecido pela representaçao de Sócrates, seu amigo mais velho, sobre quem redigiu uma série de ensaios nos quais relatava os seus diálogos.

Platão abordou largamente a forma como o ser humano pode tirar sentido de realização da sua vida. A mensagem principal que ele passa é a de que o auto-conhecimento é a chave para a perceção de realização pessoal.

De forma breve, há duas obras de Platão de particular interesse nesta análise: A Alegoria da Caverna e As Formas.

  1. Na primeira, este aborda os acontecimentos que levam um indivíduo que adquire mais conhecimento que os restantes a ser ostracizado: um grupo de indivíduos vive num gruta sem luz onde apenas consegue ver a sombra projetada dos intervenientes que vivem à nossa volta (pessoas, animais, plantas, etc.). Quando um deles consegue escapar à escuridão e sair da caverna, tem uma realidade diferente do mundo, que ambiciona contar aos restantes. Para isto, retorna à caverna mas, quando partilha a aventura com os restantes, estes encaram os relatos com cinismo e planeiam matá-lo.
  2. Na segunda, ele reflete sobre como se deve proceder de forma a ser-se bem-sucedido em algo. Ele propõe que, após obtermos o conhecimento, devemos perspetivar "a forma" perfeita dessa coisa; por exemplo, se queremos ser bem sucedidos enquanto fisioterapeutas no desporto, devemos primeiro pensar em como é o fisioterapeuta no desporto perfeito. Se após atingirmos esse estado não formos de facto perfeitos, deveremos aprofundar o nosso conhecimento, e recomeçar o processo.

Platão na Fisioterapia:

Desta forma, os ensinamentos de Platão poderão ser do maior interesse para nós enquanto classe mas, especialmente, enquanto indíviduos. 
Deve, cada um de nós, procurar conhecer-se enquanto pessoa para, posteriormente, poder refletir sobre a sua personalidade enquanto fisioterapeuta. Ao chegar a esta conclusão, poderá então perspetivar a sua forma ideal, e trabalhar nela, sempre de acordo com um método apelidade pelo próprio de "Discussão Socrática" (que será abordada de seguida). É importante compreendermos que, ao longo do nosso processo de auto-conhecimento, e portanto de melhoria da vertente técnica e conceptual, nem todos estarão no nosso patamar de conhecimento - uns estarão acima, e outros abaixo. Por este motivo, é fundamental tentarmos passar a nossa perspetiva de forma objetiva e calma, e sermos pacientes (Método Socrático, a ser discutido também de seguida).


Sócrates

Sócrates foi então, segundo Platão, o mais influente filósofo do seu tempo. Este foi particularmente importante, entre outras coisas, na retórica pela proposta do Método Socrático: este consiste em, humildemente (ou nem tanto), reconhecer-se que não se detem todo o conhecimento (Só sei que nada sei), e procurar saber-se o argumento do interlocutor, estando assim em vantagem para depois o descontruir e argumentar de forma a que fosse o próprio a aperceber-se da falabilidade do seu argumento. Para além disso, também propôs a Discussão Socrática, um método de auto ou hetero-inquisição com o intuito de promover o auto-conhecimento.

Sócrates na Fisioterapia:

Para além das já referidas vantagens no processo de obtenção de auto-conhecimento, o Método Socrático é particularmente útil em questões relacionadas com a dor crónica (ainda que exista em todas), uma vez que esta tem uma forte componente educacional e de desmistificação associada. Perceber o que o paciente sabe da sua condição e obrigá-lo, através da redação de factos, a auto-gerir-se e a chegar, idealmente de forma autónoma, a um estado de maior segurança.


Aristóteles

Aristóteles é hoje considerado o filósofo mais proficiente de sempre, com uma série de pensamentos que são ainda hoje transmitidos em muitas formas educativas.

Tal como Platão, seu mentor, Aristóteles procurou capacitar as pessoas de formas de medir a sua felicidade e sentido de realização, para além de pretender que elas se capacitassem que estes sentimentos eram obtidos através da sua expressão de inteligência e cultura.

Uma das áreas a que Aristóteles dava mais ênfase era à capacidade de retórica. Ele elencou uma série de 11 atributos sendo que todos eles tinham um extremo de "demasiado" e outro de "a menos", que permitiam a uma pessoa ser particularmente boa-conversadora. Por exemplo, corajoso era a virtude (como Aristóteles lhes chamou), e estava entre incauto e covarde; ou engraçado era o meio termo entre chato e "palhaço".

Aristóteles na Fisioterapia:

Continuando na senda da aquisição de soft-skills que nos tornem mais capazes na escuta e compreensão do paciente, a filosofia de Aristóteles - aliada à de Platão - faz com que repensemos em que medida somos capazes de replicar as qualidades importantes para o exercicio da Fisioterapia. Em último caso isto facilita o processo de empatia e adesão terapêutica, fatores fundamentais para cuidados em saúde de valor.


Epicúrio

Epicúrio é um filósofo que tem implicações importantes em correntes de pensamento que, hoje não tendo expressão real, têm uma expressão ideológica ainda profundamente vincada - foi nele que se baseou Carl Marx na sua tese de doutoramento.

De forma breve, Epicúrio remete a importância que damos ao dinheiro e aos bens materiais para secundário, e procura sugerir que, aquilo que atribui valor, é o significado das relações humanas. As atuais repúblicas baseiam-se na crença de Epicúrio de que o que era necessário para atingir a felicidade era muito mais rodearmo-nos de bons amigos do que ter dinheiro para gastar.

Epicúrio na Fisioterapia:

A noção de que o valor que atribuímos à Fisioterapia advém simplesmente do quanto somos pagos para o fazer é altamente perversa. Se somos fisioterapeutas e nos valorizamos enquanto profissão, faríamos qualquer outra coisa por mais dinheiro?
A questão prende-se com o brio profissional - a ideia de que, por vezes, devemos medir a mais-valia que nos atribuem não só pela remuneração, mas mais até pela abertura para que possamos mostrar o que podemos trazer para a discussão em termos profissionais. A respetiva remuneração acabará por chegar se nos provarmos merecedores, sendo que ao contrário nunca acontecerá, isso certamente.


Descartes

Descartes é um dos primeiros filósofos que se pode dizer procura respostas concretas na Filosofia, ou pelo menos que as considera como atingíveis por vias mais viáveis que o intelecto. Através d'O Método, Descartes considera que a congição e a procura sistemática de respostas faz parte da forma como devemos pensar sobre o Mundo em que vivemos.

Descartes na Fisioterapia:

É desnecessário prolongar-nos muito mais acerca da importância de Descartes para além do facto de este ter implicações claras na forma como se procura a "verdade". A "verdade" deixa de ser algo altamente subjetivo e abstrato para passar a ser, pelo menos a melhor que está disponível, algo mensurável. A observação sistemática de resultados ou processos implica que estes sejam mais fiáveis e, portanto - ainda mais em termos de saúde - dignos de realce, estabelecendo-se como as principais fomas de atuar.


La Rochefoucauld

La Rochefocauld é um dos filósofos mais curiosos, uma vez que era extremamente bem-sucedido sob todos os parâmetros, à exceção do amor. Na verdade, o facto de que ainda que fosse considerado bonito aliado à sua incapacidade de impressionar o sexo oposto fez com este elaborasse as Máximas de La Rochefoucauld: uma série de frases que primavam pelo seu primeiro impacto. Ele apercebeu-se que, num mundo, com tanto ruído, o ideal era captar a atenção com algo marcante, ao invés de com algo necessariamente verdadeiro.

La Rochefoucauld na Fisioterapia:

Um alerta importante é que as Máximas de La Rochefoucauld, ainda que chamativas, não são necessariamente mentira... Contudo, é difícil assegurar a sua veracidade.
La Rochefoucauld preconiza um dos princípios básicos da intervenção em saúde, o KISS (Keep it simple, stupid), assim como um dos princípios físicos mais importantes, a Navalha de Occam (a explicação mais simples é, muito frequentemente, a mais correta). Esta forma simplificadora de pensar pode livrar-nos de muitos males como raciocínios rebuscados e dificilmente replicáveis... Mas pode também levar-nos a ser simplistas e a abordar os assuntos com demasiada leviendade e dizer grandes chavões para "ganhar" pacientes. Lembrem-se que em saúde a verdade (o mais verificável possível) interessa muito e, como Carl Sagan diria - esse merecia uma reflexão inteira - "grandes afirmações requerem grandes evidências".


Michel de Montaigne

Michel de Montaigne foi quase um comediante dentro da Filosofia. No fundo, Montaigne recomendava às pessoas que, a bem da verdade, não deveriam ser tão auto-críticas e que como, diria Sartre, quase nem tudo é o que parece... nomeadamente quando nos martirizamos. "O rei do reino mais rico quando se senta na sanita mais cara do mundo... Continua sentado numa sanita".

Michel de Montaigne na Fisioterapia:

Não nos levemos tão a sério. Tão a sério no sentido de encarar cada precalço ou erro como a pior coisa que nos poderia acontecer. Afinal, tudo se trata do velho "incha, desincha e passa"... Ou melhor, nem sempre. Mas mesmo que fosse e nós não soubéssemos, mais vezes do que não as pessoas não se vão voltar a lembrar disso.


Estoicismo

O Estoicismo é uma linha de pensamento que procura atenuar a dor de viver não através do reconforto de que tudo há-de ficar bem, mas através do recurso ao pior cenário possível. Os grandes estoicistas foram Seneca (tutor de Nero) e Marco Aurélio, imperador romano, e a sua filosofia prendia-se com o facto de que, tendo em consideração o pior cenário possível, o final não haveria de ser assim tão mau... E mesmo que fosse, o suicídio era sempre uma solução viável (ato que inclusivamente foi a forma através da qual Seneca morreu... a pedido de Nero). [Também o comediante Louie CK diz que, sempre que tem um problema, há sempre uma solução à qual pode recorrer, apesar de só o poder fazer uma vez - o suicídio.]
Na verdade, o Estoicismo tem uma forma ingrata de nos dizer que não nos devíamos preocupar tanto - a efemeridade da vida deveria ser reconfortante... Para difícil, já basta a vida em si.

O Estoicismo na Fisioterapia:

"Tudo ficará bem... Se ainda não está bem, é porque ainda não acabou."


Conclusão

Pois bem... Para utilizar a Filosofia no quotidiano e na racionalidade da Fisioterapia, basta então conhecermo-nos melhor como pedia Platão, aprendermos a desconstruir crenças como Sócrates, utilizar a retórica de Aristóteles para criar empatia, desvalorizar o dinheiro como Epicúrio, utilizar o raciocínio como Descartes, simplificar como La Rochefoucauld, sermos apaziguadores com a graciosidade de Michel de Montaigne, e corajosos e fortes como os Estoicistas... 

Fácil, não é?

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